sexta-feira, abril 08, 2005

ULMEIRO


Antigamente era assim: ia-se com muita frequência da tertúlia para a livraria, da livraria para a tertúlia.

A tertúlia era o local do culto: as leituras comentadas, de textos próprios ou alheios; o ponto da situação das últimas novidades literárias, dos vultos que despontam, dos que se afirmam, dos que se confirmam, dos que declinam porque o ocaso se aproxima; os últimos acontecimentos dos meios culturais: a exposições, os concertos, a ópera, o teatro. Na tertúlia se faziam os debates. Se confrontavam as opiniões.

A livraria era o lugar dos encontros certos, nuns casos; fortuitos, noutros. Na livraria se prolongavam as discussões iniciadas nas tertúlias, mas agora entre dois ou três elementos de uma, um ou dois de outra – o livreiro/editor como moderador. Tudo ali perto do livro que se folheava com curiosidade.

Muitas vezes a livraria tinha algo a ver com o pendor ideológico do frequentador. Era o caso da Ulmeiro relativamente a mim e a tantos.

Mas nem todas as livrarias eram necessariamente assim tão cúmplices dos seus clientes. Mesmo dos certos e mais frequentes.

A Ulmeiro era um alfobre de democratas. Um refúgio de desiludidos, de obstinados oposicionistas (todos), de mais arrojados progressistas (alguns).

A Biblioteca-Museu República e Resistência, no espaço Cidade Universitária, organizou um ciclo de conferências, nos meses de Março e Abril, sobre as livrarias de Lisboa.

A da Ulmeiro foi no dia 14 de Março. E quem havia de falar sobre a livraria? Só podia ser o José Ribeiro – a alma e a memória da Ulmeiro.

Foi afinal, para nós, os ulmeirenses, um ponto da situação, uma revisão da matéria. Uma romagem de saudade… Mas também uma análise prospectiva. Que o futuro, na actual conjuntura, é bem pouco acalentador de projectos avançados.

Mas o José Antunes Ribeiro, que anda nisto há mais de quarenta anos, é um resistente: “outros começaram mais tarde, e cedo desistiram. Ele começou cedo, e ainda não desistiu”.

Foi como se decorresse um filme. Revimos tudo.

A Ulmeiro nasce em 1969. (Antes houvera uma livraria na Amadora).

Em matéria de livrarias, de editoras, de distribuidoras, tínhamos, por exemplo, os Cadernos Pragma, a Livrelco, a Afrontamento (Porto), a Centelha (Coimbra) e a Ulmeiro – isto estava tudo ligado.

Em 1972 a Ulmeiro cria a Assírio & Alvim. Que depois se independentiza. De forma menos curial…

Pela Ulmeiro desfilaram nomes como, e por ordem arbitrária: Fernando Assis Pacheco, Alda Espírito Santo (S. Tomé), Lino Carvalho, Mário Pinto de Andrade, Leo Ferré, Francisco Fanhais, Zeca Afonso, David Mourão Ferreira, Agostinho da Silva, Urbano Tavares Rodrigues, Miguel Barbosa, António Lobo Antunes (em cujo “Livro de Crónicas”, a págs 357 e seg, presta uma homenagem ao José Ribeiro), Vanda Ramos, o capitão de Abril Ramiro Correia, José Fanha, Carlos Paredes, Mário Viegas e tantos, tantos outros que nela actuaram ou aí realizaram alguma conferência ou palestra – tudo sempre na cave, qual catacumba da resistência e da clandestinidade.

Lá estavam as fotografias, expostas, às dezenas. Com estes e muitos mais.

Autos de apreensão de livros foram às centenas (muitos deles também expostos numa vitrina). Feitos, geralmente pela PSP, mas muitas vezes pelos próprios pides. Eivados de erros: mas é que a inteligência não era o seu forte, e em termos de cultura eram um desastre; muitos eram mesmo analfabetos… Porém, todos de fibra! Dóceis e fidelíssimos ao seu dono.

Duma vez, por exemplo, foram apreendidos 2500 livros.

Impressionante!

O livro falava de amor, mas sem casamento? Proibido. Apreendido.

Falava-se de Lenine, de Estaline? Logo, proibido. Igualmente apreendido. E se (o livro) não podia falar de Lenine, nem de Estaline… Logo também não de Racine!

Bastam estes dois exemplos dos brilhantes raciocínios dos guardiães da nossa moral e dos nossos brandos costumes.

Espantoso!

Mas a propósito de polícias e de censores, na sua maioria oficiais do exército, já dizia um certo inspector: “é mais fácil militarizar um civil do que civilizar um militar”!

E recordou aquela do Alçada Baptista que um dia lhe diz: sabes, compreendo que um livreiro um dia abra uma livraria, porque gosta de livros. Mas será que um merceeiro abre uma mercearia porque goste de feijão?

Não são, de facto, realidades comparáveis. E penso de mim para mim: na verdade, abrir uma livraria é essencialmente um acto de amor. Abrir uma mercearia é um mero acto de comércio.

E o desfiar de memórias continua.

E o José Ribeiro recorda “essa prestimosa instituição que estava sedeada na António Maria Cardoso (onde hoje – imagine-se – se pretende construir um condomínio de luxo… - Nada mais adequado, convenhamos!!!)”, que ele tantas vezes foi forçado a visitar…

E não esqueceu de recordar os artificiosos esquemas engendrados para esconder os livros clandestinos ou proibidos, como falsas paredes e até uma inocente salamandra – mas esta para alimentar outras fogueiras (confidenciei de novo com os meus botões).

Antes, editora e livraria eram duas entidades numa só – qual mistério da santíssima dualidade.

Mas, por razões várias, sobretudo económicas (presumo eu), em 1979 quebra-se o mistério: a livraria ganha autonomia relativamente à editora. Nasce então a Livrarte. Esta, sob a batuta da Lúcia. Continuando o marido, o José Ribeiro, à frente da editora; essa, a partir de agora, e em bom rigor, sim, a Ulmeiro.

Só que eu – e outros, por certo – quando lá vou, nunca vou à Livrarte. Vou sempre à Ulmeiro. À porta e os recibos dizem Livrarte. Mas eu leio sempre Ulmeiro. Não há nada a fazer. A Lúcia (e até a Teresa, a Manela ou o Agostinho) sabem que é assim. E o Zé Ribeiro acha que, lá por isso, não há crise.

Em 1994, por voto unânime dos quatro partidos nela representados (PS, PSD, PCP e CDS), a Junta de Freguesia de Benfica delibera homenagear a Ulmeiro pelos seus 25 anos em prol da cultura.

Com o andar dos tempos, os grandes grupos (vg Bertrand, Bulhosa ou FNAC) florescem. Os independentes sobrevivem (os que sobrevivem) com dificuldade.

Os grandes açambarcam… Os pequenos, nada. Nem as migalhas.

Açambarcamento é crime… Mas sem castigo. Como vem sendo hábito noutros âmbitos e noutros espaços.

Passaram-se em revista anos difíceis, de luta terrível, em que era preciso ter nervos de aço para não sucumbir nem desistir. Em que mais valia quebrar do que torcer.

Mas também as tremendas e graves dificuldades dos tempos que correm, cuja denúncia não cala, minimamente, nos poderes instituídos ou na tutela adormecida.

Na realidade, ser editor/livreiro, nesse tempo, era uma aventura que se pagava caro.

Hoje, é uma aventura que não tem preço.

E ser leitor, nesse tempo, sem ser da palha que nos queriam dar, era bem complicado.

Hoje, ser leitor é considerado um luxo. Que tem o correspondente preço.

Foi um fim de tarde bem interessante.

Gostei.

Gostámos todos.

Longa existência e o melhor êxito à Ulmeiro (claro que me entendem: incluo a Livrarte) e a quem lhe dá vida!


2 comentários:

José Antunes Ribeiro disse...

Caro José Luís!

Obrigado pelo texto. Ando tão distraído e obcecado com coisas que, por vezes, nem merecem o tempo que gasto nelas, que só hoje dei pelo seu texto. Gostei muito, muito obrigado!
Gostava de o "linkar" para o meu blog, mas não sei como se faz.Hélas...
Zé Ribeiro

Manuel da Mata disse...

E já somos dois para um futuro curso de "linkar"; no entretanto, se eu aprender, ensino-te.
Como vês, ó Zé Ribeiro!, ainda tens amigos para falarem do que criaste e/ou ajudaste a criar.
Eu, por razões óbvias, digo sempre a Ulmeiro, ainda que Livrarte seja um nome sugestivo.
Mas sei também que nós criámos uma relação afectiva com as palavras como ensinou o Émile Bemveniste e por isso Ulmeiro se sobrepõe no nosso espírito.
Um abraço

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