Chama-se Luís Fernandes e é Professor da Faculdade de Psicologia e Ciencias da Educação da Universidade do Porto.
Escreve todas as semanas no PÚBLICO. O artigo de hoje intitula-se “O pecado de ganza”.
Volta, pois, a um assunto por ele já antes abordado, em 02JUN04, que se intitulava “Lusoganza”.
Mas hoje, começa assim:
«Cada um é o que é, mesmo quando por vezes se comporta de acordo com aquilo que não é. E cada um é como cada qual, cada um pesa o que pesa, vale o que vale e tem a profissão que tem. Podia, no entanto, ter tido outra - essa é que é essa. É que a escolha da profissão está sujeita a um grande aleatório, como o demonstra o exercício de perguntarmos aos nossos botões o que poderíamos ter sido, se não fôssemos o que somos. Sem importar de momento o que sou, no meu caso lembro-me de ter querido ser escritor. E, caso não conseguisse, crítico de literatura, que isso sempre acaba por se conseguir. E polícia da Judiciária. Ou, caso não conseguisse, infractor - que isso sempre se consegue. Dentro do universo dos infractores, sem dúvida burlão. Mas burlão chique, desses rodeados de jovens beldades. Ainda irei a tempo?»
Tal e qual: linguagem chã, acessível, ligeira qb, sem ares professorais.
Ninguém diria – só por aquele começo – que aborda questões muito importantes e com a devida seriedade.
Mas aborda.
E trata de novo, a questão do tráfego e do consumo de droga e a pesada mão de alguns legisladores, na matéria.
E toma posição: não a favor dos consumidores de drogas, mas contra, obviamente, certo inusitado e excessivo rigor praticados em certas partes deste mundo.
E foca “a desproporção entre um acto - o transportar uma pequena quantidade de haxixe - e a violência feroz da reacção penal.” Para logo a seguir lembrar: “Foi com base em desproporções semelhantes que, na época medieval, queimámos pessoas acusadas de bruxaria.”
Depois traz à colação um caso muito recente. Para, voltando ao seu tema genérico, logo a seguir considerar: “Dentro de algum tempo poderemos olhar para trás com a lucidez que a distância permite. Veremos então que, em pleno auge da civilização tecnológica, continuávamos a revelar um estranho atavismo intelectual.”
Um pouco adiante reflecte: “A forma como continuamos a lidar com o tema das drogas é, de facto, intrigante e desconcertante. Trata-se dum território povoado de equívocos, cujas razões teríamos de ir buscar à longa história da dominação ocidental sobre os costumes do Outro.” E explica: “O impulso conquistador passou, num primeiro momento, pela repressão dos símbolos maiores das culturas subjugadas. Foi assim com a folha de coca, utilizada nos cerimoniais religiosos incas, quando os espanhóis submeteram os povos andinos e impuseram a sua religião à dos outros. Num segundo momento, explorou-se o potencial comercial destas substâncias: de novo os espanhóis com a coca, mas também portugueses e ingleses com as rotas do ópio oriental, cujo interesse lucrativo envolveria Inglaterra e China nas famosas Guerras do Ópio. Curiosidade histórica: Hong Kong viria a ser inglês através do tratado que a China, derrotada, foi obrigada a assinar. Vem aí a vingança 150 anos depois, com a invasão dos têxteis...”
E faz uma síntese: “As substâncias psicoactivas relevam, pois, duma dupla luta: entre civilizações, no jogo que opôs colonizadores a colonizados; no interior de cada sociedade, no jogo moral entre prazeres e interditos. Viciado desde início, é um terreno onde se esvai a capacidade de raciocinar claramente, submergindo-nos numa moral que não questiona os seus próprios princípios.”
Para logo concluir: “O século XX imporia por todo o planeta a "guerra às drogas" - uma cruzada dos EUA comprada acriticamente um pouco por todo o lado. Como a Coca-cola, a war on drugs tornou-se natural e indiscutível. Só varia na modalidade, à semelhança da própria droga: ou é hard, como no Dubai, ou é soft, como na Europa. Mas o escorregadio princípio moral em que assenta é universal - como seria desejável que fosse universal o modo como nos divertiremos, daqui a décadas, ao olhar o espectáculo de irracionalidade que agora, levianamente, oferecemos...”
.
.
Antes de tomar posição definitiva relativamente ao uso e buso da droga, e a questões ligadas a esse mundo, é necessário ponderar como combater o problema.
Os métodos despóticos e desumanos têm de ser revistos. Afastados.
A pura complacência também não resolve coisa nenhuma. Antes agrava.
Não são as circuntâncias que se adaptam às leis. O contrário, isso sim, é o que se deve passar.
.
Estava só a falar para os meus botões, como diz o autor no início da sua crónica.
Sem comentários:
Enviar um comentário