terça-feira, maio 31, 2005

“SÍTIO” DO SIM, DO NÃO E DO TALVEZ


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De inegável interesse – e oportunidade – é a abordagem do Prof Vital Moreira, no PÚBLICO desta data.

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Sem rumo na tempestade

Vital Moreira

Não sei se na noite de domingo houve alguma troca de felicitações recíprocas entre os líderes da frente do "não" - Le Pen, De Villiers, Fabius, Arlette Laguilier e Marie-George Buffet - para celebrarem a sua rotunda vitória no referendo do tratado constitucional da União Europeia em França. Se o pudor político prevaleceu, nem por isso deixam de se poder felicitar pelo sucesso comum.
Cumplicidades assumidas ou não entre os rejeicionistas, torna-se evidente que a Constituição europeia foi vítima de uma heteróclita coligação negativa, onde se misturaram, sem tom nem som, os mais viscerais inimigos da integração europeia desde o início, alguns dos que sempre com ela estiveram e lhe deram os sucessivos impulsos para a frente e os que alegadamente a rejeitaram em nome de uma outra constituição "mais federal" ou "mais europeia". O facto de os segundos e terceiros terem ajudado os primeiros a acertar um profundo golpe na própria UE - cujas consequências ainda resta apurar, mas cuja gravidade não pode ser contestada -, diz bem dos equívocos com que se jogou este referendo. A dimensão de populismo e de demagogia que sempre acompanha os exercícios referendários, sobretudo os que têm uma amplitude "holística" como este, permitindo aos eleitores responder às perguntas que eles próprios quiserem (mesmo que não tenham nada a ver com o objecto do referendo), ajuda a explicar estas alianças politicamente "contranatura".
Tudo e o seu contrário pôde ser invocado contra o texto constitucional: nacionalistas e soberanistas contra um suposto super-Estado europeu escondido por detrás da Constituição, e federalistas radicais, insatisfeitos pela sua timidez no sentido integracionista; ultraliberais, por ela não dar suficiente lugar ao mercado, e partidários do modelo social francês, denunciando a deriva neoliberal e "anglo-saxónica" da UE; católicos fundamentalistas, pela falta de referência à herança cristã da Europa, e laicistas radicais, pela referência expressa às religiões. Contra a Constituição foram invocados os argumentos mais reaccionários, como a xenofobia mais rasteira e o nacionalismo mais pedestre, e os mais despropositados, como a ideia de que ela "constitucionalizaria" o modelo de economia de mercado, quando este está "constitucionalizado" desde 1957 no Tratado de Roma que instituiu a Comunidade Económica Europeia. Não faltou quem assacasse à Constituição o ela deixar margem para restaurar a pena de morte, para proibir o aborto ou para pôr em causa o laicismo francês! Houve quem o dissesse convictamente e houve ainda mais quem o acreditasse.
Parece evidente que o tratado constitucional foi sobretudo o bode expiatório dos males da França e das dificuldades que defrontam a UE. Para além do descrédito do Governo de direita em França, o que contou foi o desemprego, o débil crescimento económico, as deslocalizações de empresas, o alargamento da UE a leste, a globalização, a insegurança quanto ao futuro do modelo social francês, em particular, e europeu em geral. A infeliz e inoportuna coincidência da polémica sobre a adesão da Turquia ou sobre a directiva Bolkestein (criação do mercado interno dos serviços), bem como a entrada em vigor da liberalização das trocas comerciais com a China, tudo isso contou para o pretexto global de que foi vítima a Constituição. O protesto contra o que está (e Bruxelas tem as costas largas) e o medo do desconhecido explicam o rotundo desaire sofrido pela UE em França.
O facto de a Constituição não ter a ver com nada disso - e poder ser pelo contrário um antídoto contra alguns dos males e impasses em causa - não contou nada. Na verdade, não se tratou de rejeitá-la pelo que ela é em si mesma, mas sim como expressão do descontentamento e da insegurança dos franceses perante a crise do actual modelo económico e social. A circunstância de o provável afastamento da Constituição não afastar o desemprego, nem as deslocalizações de empresas, nem a invasão dos canalizadores polacos, nem a inundação dos têxteis chineses, nem o dumping fiscal dos países do Leste e o dumping social da Índia e da China, nem a liberalização dos serviços públicos, nem a necessidade de reforma do modelo social francês -, nada disso conseguiu parar a deriva rejeicionista. Tampouco serviu o simples pensamento de que só a Constituição, para além de menos liberal e mais social do que os actuais tratados, poderia conferir às instituições da UE o élan necessário para enfrentar a crise e relançar o projecto europeu.
Há evidentemente muitos argumentos politicamente coerentes para rejeitar a Constituição europeia. Ninguém se surpreende com a posição dos nacionalistas de direita ou de esquerda, ou dos comunistas e outras forças políticas contrárias à economia de mercado, com ou sem modelo social europeu. Sempre estiveram e hão-de estar contra a UE e contra o avanço da integração europeia. Votam contra a Constituição agora como teriam votado contra o Tratado de Maastricht ou contra o Tratado de Roma. Louve-se-lhes a coerência. Mas existe também um argumento cínico contra a Constituição europeia, que é o dos que a rejeitam pretensamente "em nome da Europa" e de em nome de uma "outra Constituição". No seu argumentário, entre nós representado pelo Bloco de Esquerda, o tratado constitucional deve ser rejeitado não por ser uma constituição mas sim por não ser uma genuína constituição aprovada em assembleia constituinte; não por trazer Europa a mais, mas sim por trazer a menos; não por ser um avanço constitucional, mas sim por ser pouco mais do que a constitucionalização do que está, incluindo o modelo económico neoliberal; não por não ser melhor do que o que está, mas sim por ser muito recuada quando comparada com o que deveria ser.
Mesmo que a Constituição correspondesse a essa caricatura (e não corresponde!), não existe maneira mais simples, nem mais cínica, de rejeitar qualquer avanço do que em nome de um maximalismo consabidamente utópico, ou pura e simplesmente indefensável. Assim se justifica rejeitar a alternativa que realmente existe em nome de algo que não existe nem pode existir, para assim justificar a manutenção do que está. A verdade é que nenhum dos anteriores tratados instituidores da UE foi tão democraticamente participado na sua elaboração como este, numa "convenção" onde participaram representantes das instituições europeias e nacionais, nomeadamente do Parlamento Europeu e dos parlamentos nacionais, tendo sido expressamente aprovado pelo primeiro, para além de o dever ser pelos segundos; nenhum tratado anterior foi submetido a tão amplo escrutínio e a tão prolongada discussão pública; nenhum avança tão decididamente na democratização das instituições e na transparência da governação europeia (mais poderes para o Parlamento Europeu e para os parlamentos nacionais, iniciativa legislativa popular, reuniões públicas do Conselho de Ministros quando no exercício de poderes legislativos); nenhum foi tão longe na protecção dos direitos dos cidadãos europeus face às instituições europeias (constitucionalização da Carta de Direitos Fundamentais); nenhum assumiu tão decididamente a UE como entidade política autónoma na cena internacional (política externa e política de defesa comum). É tudo isso que se perde sem o tratado constitucional.
A rejeição da Constituição europeia não significará somente prescindir de uma UE mais forte, mais democrática, mais transparente, com instituições mais eficientes e, mesmo, mais social. Implica a abertura de uma crise de confiança e de desorientação que só pode traduzir-se numa paralisia mais ou menos demorada, quando a globalização, a ofensiva de hegemonia mundial dos Estados Unidos e a emergência de novos poderes de vocação mundial, como a China, mais precisam do protagonismo da Europa. Em vez de avançar com rumo, a Europa fica à deriva sem leme no meio da tempestade.
Professor universitário

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Outras reacções, mais:

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«Diz-se [PÚBLICO, TR 31 MAI 05]

"A França matou o sonho europeu ou, pelo menos, adiou-o por largos anos."

LUÍS OSÓRIO

A CAPITAL, 30.05.05

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"A vitória do 'não' em França coloca em causa o futuro da UE. Más não é o fim do sonho europeu."

FILIPE RODRIGUES DA SILVA

DIÁRIO DIGITAL, 30.05.05

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"A vitória do'não'em França mostra o défice democrático na elaboração da constituição europeia."

J. BACELAR GOUVEIA

DIÁRIO DE NOTÍClAS, 30.05.05

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"[O 'não' da França ao Tratado Constitucional] vai ter consequências graves em relação ao futuro da UE."

MÁRIO SOARES

TSF, 30.05.05

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"O falhanço francês é também o falhanço da UE."

VITAL MOREIRA

WWW.CAUSA-NOSSA.BLOGSPOT.COM

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"'Esta Europa' já não é a 'Europa francesa'."

JOÃO MARQUES DE ALMEIDA

DIÁRIO ECONÓMICO, 30.05.05

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"Cada vez mais, na velha Europa, seja o que for que esteja em votação (...), o cidadão médio usa o seu voto como arma de contra o Executivo em funções."

OCTÁVIO RIBEIRO

CORBEIO DA MANHÃ, 30.05.05

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"Os referendos, é sabido, levam quase sempre as pessoas a não responder à pergunta posta. Os franceses com o 'não' disseram 'sim' queremos perceber bem no que estamos metidos."

FEBREIRA FERNANDES

IDEM

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" O resultado do referendo em França coloca um ponto final na construção da UE à revelia dos cidadãos."

RUI COSTA PINTO

VISÃO ON-LINE, 30.05.05

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"A estrondosa vitoriado 'não' é um sério aviso aos líderes políticos que julgam ser possível construir a casa europeia à custa do desemprego e da ditadura dos grandes interesses

económicos."

IDEM, IBIDEM

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"Alguém pensa que sem a França, a Holanda e o Reino Unido, pelo menos, é possível haver uma UE assente nesta Constituição?"

PACHECO PEREIRA

WWW.ABRUFTO.BLOCSPOT.COM

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"O verdadeiro problema é que a malaise francesa dá sinais de alastrar. Pode até acontecer que já não haja tratado para referendar quando chegar a vez dos britânicos. E até dos portugueses."

LUÍSA BESSA

JORNAL DE NEGÓCIOS, 30.05.05»

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E outras reacções, ainda, na imprensa de hoje:

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Os bárbaros e a Europa

LUÍS OSÓRIO

A utopia do sonho europeu preconizava que, num dia não muito distante, a maioria dos países afastaria as suas diferenças e chegaria a um compromisso colectivo. Nessa soma de diferenças estaria a força futura de uma Europa enfraquecida, decadente e totalmente incapaz de fazer face à feroz concorrência dos novos tigres asiáticos, das novas ambições imperiais dos Estados Unidos e das novas ameaças surgidas após a queda dos muros.
Essa revolução improvável, ao contrário da maioria das revoluções da história humana, não era obra de agitadores insurrectos e rebeldes, mas do próprio sistema de que é feito o mundo reformista e globalizado. Era obra e graça de um conjunto de homens formados e deformados pela chamada realpolitik, de um conjunto de homens que se dividem entre os puros defensores do mercado livre e os social-democratas. É do compromisso entre essas duas famílias políticas, pais da globalização e da construção europeia, que nasce uma das maiores utopias de que há memória nos tempos. A possibilidade das pessoas poderem esconder a matéria medíocre de que são feitas por dentro, poderem atenuar o seu medo do outro e do exterior, de poderem esconder o seu terrível egoísmo, de poderem esconder tudo isso em nome de um ideal colectivo que as tornaria mais fortes, eficazes, competitivas, mas, também, menos temerosas do outro e do exterior, menos egoístas e mais solidárias. É por isso que o sonho europeu era também uma verdadeira revolução interior, um tumulto que traria às próximas gerações a responsabilidade de poder ver nascer no seu seio um verdadeiro "Homem Novo", não a pervertida criatura que emergiria da revolução leninista, mas uma efectiva mudança gerada pelas necessidades específicas do nosso tempo.
Na primeira fila dos que rejeitaram em França o tratado constitucional, e se preparam para fazer o mesmo na Holanda, estão os que se revêem em posições anti-sistémicas. Os revolucionários, marxistas ou de inspiração fascista, cavalgam o descontentamento popular em relação aos políticos locais e aos burocratas de Bruxelas, fazem-no aliás tendo a noção de que a rejeição do grande, utópico e revolucionário sonho reformista para a Europa, lhes poderá garantir um novo fôlego para o seu futuro político.
A larga maioria dos que rejeitaram a Constituição que, no essencial, é menos liberal do que o tratado de Nice (o que está em vigor) fizeram-no estimulados pelo medo que foi, como sabemos, o detonador de todas as perfídias e ignomínias que o século XX conheceu.
O medo é o aliado mais poderoso dos que querem derrubar o que existe em nome de projectos lunáticos, racistas ou contrários à lógica humana. Um medo que levou ao nascimento, por exemplo, do III Reich. Um medo que ontem vimos ser festejado nas ruas da grande Paris e que amanhã estará também à vista de todos na cosmopolita Amesterdão. Ler O Declínio e Queda do Império Romano, de Gibbons, que nos mostra toda a evolução de Roma, do apogeu imperial até à sua conquista pelos bárbaros, é uma tarefa dolorosa e com um prenúncio de morte. Os bárbaros estão dentro de nós e nem sequer demos por isso.

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Ainda também n’ A CAPITAL, mas desta vez outro colunista:

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Passo atrás

Jacinto Lucas Pires

Os franceses disseram claramente «não» à Constituição Europeia e nestes dias as ondas de choque espalham-se pelo (cada vez mais) Velho Continente. Apesar das declarações de serenidade de Juncker e Barroso, tentando desdramatizar, é óbvio que a situação é muito grave e difícil de resolver. Os processos de ratificação prosseguem e depois... logo se vê – por enquanto, parece ser essa a mensagem. Mas é claro que não se pode virar a cara ou assobiar para o ar.
O «não» francês deve ser dissecado até às últimas razões. Desde logo, porque tem de fazer repensar e mudar muita coisa no modo como a União (não) se dá a conhecer aos cidadãos.
A difícil situação económica, «cartões vermelhos» a Chirac, confusão sobre um suposto carácter «direitista» do texto constitucional (!?), pulsão reprimida por uma qualquer «ruptura radical» (Pascal Perrineau), a «pequenez» dos principais actores políticos, medos vários (nomeadamente a sensação de vazio do «lugar francês» no novo planeta globalizado) – várias razões extra-Europa terão concorrido para este «não». Mas, como alguns notam, isso só se dá porque a ideia-sim da Europa política e desta Constituição não conseguiu valer por si. (Por outro lado, o «não» é apenas isso; não avança com alternativas e é percorrido por discursos contraditórios.)
Essa ideia-sim – a ambição de uma Europa que não é só «espaço» mas verdadeira «casa» e «farol» no mundo – tem de ser comunicada de novas formas, livre de joguinhos políticos e atravessada de uma outra esperança. Ou corre-se o sério risco de um monumental passo atrás.

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Vejam-se, também, estas opiniões “soltas”:

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«A diferença que começa a antever-se, vinte e quatro horas depois do referendo francês, é que a Europa passou a ser também a sua própria plateia. Num continente que sempre cresceu por ter quem o seguisse, o amasse, o odiasse, isto pode ser destrutivo. Sendo palco e plateia em simultâneo, é por isso tão duro receber uma recusa. Um não, imprevisto pela encenação, pode inverter todo o sentido da peça.»
Miguel Romão (A Capital, TR 31 MAI 05)

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«Há um «sonho americano» e houve um «sonho europeu». Um é de Peter Pan. O outro é de um velho rezingão. Os dois viviam num paraíso: havia uma «economia moral», em que quem trabalhasse e não tivesse comportamentos anti-sociais poderia aspirar à segurança no emprego e a um futuro melhor para os seus filhos.»
Fernando Sobral (Jornal de Negócios on line, id)

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«Esse sonho foi dinamitado sem dó nem piedade.»
Id (id, id)

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O «não» francês mostra uma coisa: a Europa que queria modelar o mundo quer, agora, proteger-se dele. Como a América. E é isso que está a levar ao choque frontal entre os que vivem no mundo das oportunidades e os que se sentem cada vez mais afastados delas. O «não» francês é o sinal da busca de velhos valores seguros que foram sendo alterados ao longo de todo o século XX.
Id (id, id)

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E leia-se, ainda, o artigo que António Perez Metelo escreveu, hoje, no Diário de Notícias, onde nos dá conta do debate de ontem à noite no canal francês TV5, logo após o conhecimento da vitória do “não”.
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Intitula-se o artigo: A 'velha Europa' contra-ataca.

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Outro, ainda, é o contributo do colunista do Diário Económico, João Paulo Guerra, no seu artigo de hoje, Non.

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Igualmente na blogolândia há matéria de reflexão sobre este assunto. Assim:

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Europa a menos: o remédio é mais Europa

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NOTAS A DESENVOLVER PARA UM ARGUMENTÁRIO DO “NÃO”

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Tempos difíceis

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Uma opinião

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