quinta-feira, junho 16, 2005

“SÍTIO” DO SIM, DO NÃO E DO TALVEZ


.

Um passo atrás e dois à frente

Esther Mucznik / PÚBLICO / SX 10JUN05

.

Bastou um dia, uma noite, uma votação, e a crise estalou. Uma crise que lavrava há anos irrompeu de repente à luz do dia, deixando meia Europa atónita, paralisada, consternada.

"Vitória", triunfavam nessa noite de 29 de Maio, os votantes do "não" francês na emblemática Praça da Bastilha. Vitória de quê, sobre quem? Não importa, o essencial era esse sentimento de união dos "de baixo" contra "os de cima", a satisfação dos primeiros por terem conseguido fazer recuar os segundos.
É isso a democracia? Tenho sérias dúvidas.
Não gosto de referendos, já o escrevi. E não acho que seja o espaço público por excelência de um debate esclarecedor. Contrariamente ao que se diz, o debate em França, apesar de intenso, não foi clarificador, quer do lado do "não", quer do lado do "sim". Pretender, como profetizavam os primeiros, que o tratado constitucional punha em causa a laicidade, que ia contra a emancipação das mulheres ou que consagrava um modelo ultraliberal é tão mistificador como pretender que a Constituição reforçaria as posições francesas no seio da União, argumento-chave dos segundos.
"Esse comportamento é clássico", diz Jacques Attali, na entrevista a José Manuel Fernandes, aqui no PÚBLICO. "Num referendo muitas vezes não se responde à questão que é colocada, mas a quem coloca a questão." Foi isso que fizeram os franceses, fazendo a Europa refém do seu descontentamento.
Os referendos francês e holandês alertam-nos para o fosso cada vez maior entre as instituições representativas, os parlamentos, e a massa dos "representados". Se houvesse referendos nos Vinte e Cinco países da UE, a maioria votaria certamente à revelia dos seus órgãos eleitos. E o que é mais preocupante é que as questões europeias não são provavelmente a excepção. Suspeito que, a propósito de uma grande parte de questões eventualmente submetidas a referendo popular, o resultado deste seria diferente da votação dos parlamentos. Porquê? Porque enquanto esta última é, ou deveria ser, produto de ponderação entre pontos de vista diferentes e até de compromissos para obter uma legitimidade e uma base de apoio alargada, o referendo tornou-se cada vez mais na arma do populismo e da demagogia, cujos resultados são utilizados para justificar tudo e o seu contrário.
Dir-se-á que a consulta popular directa é necessária sobre questões fundamentais e que a ratificação de um tratado constitucional é uma delas; que a consulta popular legitima as decisões tomadas. Provavelmente, mas na exacta proporção em que desacredita o sistema democrático representativo, em que favorece a demissão das elites dirigentes, abrindo o campo a todos os demagogos, aos lobbyistas profissionais e aos peritos de sondagens.
Está na moda dizer-se que o eleitor é rei, que "o povo é quem mais ordena"; fica bem escarnecer das instituições políticas e lisonjear a vontade popular perante a qual os políticos se curvam como única fonte de poder e de legitimidade. Num mundo em que a democracia directa tende a ser cada vez mais valorizada, comportamo-nos como se a sociedade não precisasse de uma elite dirigente, nem de instrumentos de delegação. Provavelmente temos dificuldade em preencher a nossa declaração de impostos, mas de repente todos sabemos governar. É muito instrutivo, a esse respeito, ouvir os espaços matinais abertos à opinião pública de algumas rádios nacionais.
A realidade é que tudo isto encerra um perigo: uma crise de legitimidade do sistema capaz de abrir a porta a líderes populistas, como vemos em França, Áustria, Alemanha e na própria Holanda, susceptíveis de sensibilizar populações desencantadas com o sistema democrático. Basta lembrar os anos 30 do século passado em que a desilusão com a democracia atolada na impotência e no pessimismo favoreceu o totalitarismo brandido por demagogos com capacidade de mobilização.
Voltando à Europa. Contrariamente a uma opinião generalizada, não me parece que haja um défice democrático na União Europeia. Não falta sequer às suas instituições um parlamento eleito pelos cidadãos que até se preocupa com as viagens de férias do presidente da Comissão. Há, sim, um défice dos homens e das elites que as integram e lideram, um défice de visão política e estratégica: excesso de burocracia, escassez de ideias; há, sim, um défice dos políticos nacionais, que sistematicamente se escudam por detrás do papão Europa quando têm de tomar medidas impopulares, fazendo dela, aos olhos da população, o problema e não a solução.
Alguém se lembra da existência de campanhas sistemáticas de esclarecimento sobre a necessidade da integração europeia para o desenvolvimento dos países europeus e sobretudo para a sua adaptação a um mundo em mudança veloz? Alguém, entre políticos e deputados europeus, perdeu muito tempo a explicar a atracção e o desejo ardente dos países de leste pela integração europeia? Em contrapartida, esgrimem-se argumentos sobre os medos do "canalizador polaco", que, aliás, já foi e ainda é também português. O resultado disto tudo é a crise crescente, aos olhos das populações, da legitimidade da União Europeia.
Com isto não pretendo defender o caminho político até aqui seguido. Defendo uma União Europeia aberta ao mundo, com uma relação transatlântica privilegiada, baseada na comunhão de valores e objectivos; uma União Europeia disponível para o seu próprio alargamento numa perspectiva global da sua relação com o mundo e não apenas virada para o seu umbigo; uma União Europeia orgulhosa dos seus valores de liberdade, de democracia, sem vergonha da sua história, mas capaz de tirar dela as suas lições; que cultive a ética e a espiritualidade sem medo de não ser "progressista"; uma União Europeia capaz de enfrentar seriamente a crise económica, reflectindo sobre o melhor modelo, ou modelos, a adoptar para combater a pobreza e o desemprego, sem concessões à demagogia, ao facilitismo e às ilusões; que respeite a diversidade das experiências, fonte de inovação e de progresso, sem procurar sempre centralizar, hierarquizar, uniformizar; uma União Europeia, finalmente, que tenha a coragem de assumir um papel relevante face às ameaças mundiais, que não esteja, como refere Phillip Gordon no jornal Le Monde, "demasiado ocupada a discutir as maiorias qualificadas, o tamanho da Comissão e as cooperações reforçadas, quando os americanos procurem os seus interlocutores europeus para debater o Iraque, o Irão ou o terrorismo".
Há males que vêm por bem. Os resultados franceses, holandeses e os outros que se adivinham obrigam-nos a pensar. E, neste caso, a parar para pensar e para debater seriamente, não na melhor forma de obter o "sim", mas na Europa que queremos, na Europa de que o mundo precisa. Para confrontar os diferentes projectos europeus e adoptar a solução política e jurídica mais adequada à diversidade e ao dinamismo da UE. E o melhor espaço para isso não são os referendos: para além das próprias instituições europeias, são os parlamentos nacionais e o espaço público de cada país, a imprensa, mas também todas as instituições da sociedade civil, livres da contingência de pressões eleitorais. Por vezes, mais vale um passo atrás e dois à frente do que uma bicicleta que não sai do sítio.
Investigadora em assuntos judaicos

.

.

.

A resposta aos "não": mais Europa!

Álvaro de Vasconcelos / ID / SB 11JUN05

.

Duas expressivas vitórias do "não" obrigam a uma reflexão que não se cinge à discussão da Constituição. Aliás, basta seguir o debate que actualmente decorre entre os governos europeus sobre o montante do orçamento comunitário e da sua repartição para o perceber.
Da vitória do "não" e dos argumentos usados pode concluir-se que existe uma percentagem de franceses, influenciados pelas correntes soberanistas, que se opõem a todo o avanço da construção europeia, e que os eurocépticos têm hoje apoios na Holanda e que existe, um pouco por todo lado uma inquietante subida da xenofobia. Mas as vitórias do "não" e a progressão do descontentamento em outros países da União, como a Alemanha, resultam antes de tudo da incapacidade dos governos nacionais e da União de responderem, com eficácia, aos problemas que preocupam os cidadãos. Nem só antieuropeus, longe disso, votaram "non-nee". Muitos reivindicam que a União ajude a reduzir o desemprego ou intervenha decisivamente na política internacional - a divisão europeia perante a guerra no Iraque, contra a unanimidade popular, foi considerada como prova de fraqueza. A resposta é mais Europa, e não menos, e o próximo Conselho Europeu de 16 e 17 de Junho deve dar sinais claros de que está consciente dessa necessidade.
A maioria dos apoiantes do "sim" considera que a Constituição não só promove a construção da Europa dos cidadãos, como cria melhores condições para garantir o progresso económico ou para a Europa agir - e têm razão. Descartar o significado do "não" argumentando que foi fundamentalmente um voto contra as políticas nacionais e não contra a União é uma imprudência, pois existe hoje uma consciência muito mais generalizada de que as políticas nacionais são cada vez mais determinadas por decisões tomadas a nível europeu, sobre as quais os cidadãos pouca influência têm. A Constituição europeia pouco tem a ver com isto, mas os referendos nunca são apenas sobre os tratados: são a única ocasião em que os cidadãos podem exprimir o que pensam das opções tomadas pelos seus governos no quadro da União. As eleições para o Parlamento Europeu, de 2004, já tinham mostrado o descontentamento da maioria, castigando pesadamente quase todos os governos nacionais, mas ninguém pensou, então, que o seu voto poderia mudar o rumo do governo europeu.
O referendo francês, sobretudo, veio confirmar que a Europa, desde Maastricht, está na rua, que já não é possível construí-la longe dos cidadãos e que é preciso agir para responder aos seus anseios e para tornar a União mais transparente e mais democrática. Tudo isto será mais fácil com a Constituição, mas há medidas que podem e devem ser já tomadas: primeiro, as perspectivas financeiras devem, nos meios atribuídos, representar um reforço real das políticas que tenham um impacto significativo sobre o crescimento e o emprego (um regresso ao voluntarismo dos pacotes Delors, agora aplicado à Estratégia de Lisboa, através de um "pacote Barroso"); segundo, os governos europeus devem demonstrar uma real vontade de agir em comum.
Uma
oportunidade a não perder será a comemoração do décimo aniversário da Declaração de Barcelona, onde a União deve definir uma posição comum de defesa da transição democrática no Mediterrâneo, deixando de lado a defesa do statu quo político nesta região; e, terceiro, as reuniões do Conselho, quando estão em causa matérias legislativas, devem ser abertas, para que os cidadãos possam saber quem votou o quê e com que argumentos. Tudo isto pode ser decidido já no próximo Conselho Europeu, e este tipo de acções tem certamente muito mais potencial para conquistar novamente o apoio de cidadãos cépticos do que qualquer campanha de informação, por melhor que seja.
Ao mesmo tempo é preciso resolver o impasse constitucional. Como já tinha sido proposto pela Convenção, essa resolução passa pela separação entre as matérias constitucionais per se e as políticas da União. As verdadeiras inovações estão nas partes I e II do tratado constitucional: a definição da identidade normativa e política da União, as suas competências, o novo quadro institucional, as estruturas da PESC (a criação de um ministro Europeu dos Negócios Estrangeiros) e, por último, mas não menos relevante, a introdução da Carta dos Direitos Fundamentais. A parte III centra-se nas políticas da União, como o mercado interno, a concorrência e a política agrícola comum. Esta foi a parte verdadeiramente rejeitada, aquela que mais preocupações levanta junto dos cidadãos. As partes I e II poderiam ser ratificadas sem novas negociações, constituindo a base do novo tratado; a parte III não introduz grandes alterações, pelo que poderia manter-se em vigor o Tratado de Nice, continuando o debate sobre o modelo social europeu.
Essencial é reafirmar a essência normativa do tratado constitucional, para proteger a maior conquista do debate na Convenção: a definição da Europa como um espaço aberto, assente nos valores da diversidade, da cidadania democrática e dos direitos humanos. O perigo é real, pois os que defenderam uma definição excludente, culturalista e religiosa da União, que negaria à Turquia, por exemplo, a possibilidade de ser membr,o porque os seus cidadão professam maioritariamente outra religião, encontram alento nas vitórias do "não". A inclusão na diversidade, através da integração das democracias europeias num projecto comum, continua a ser o melhor contributo que a União pode dar ao mundo. É o que faz da União um bem público internacional, para utilizar a feliz fórmula de Celso Lafer, a melhor promessa para uma ordem internacional mais justa, capaz de garantir a solidariedade para com as centenas de milhões que sofrem com a intolerância, a pobreza e a guerra. Para que a Europa seja uma promessa real para o mundo, tem de continuar a ser um bem público para os seus cidadãos e não pode esperar por um novo tratado para o comprovar.
Director do Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais

.

.

.

O nome e a coisa

Vital Moreira / ID / TR 14JUN05

Um dos principais argumentos dos adversários do Tratado Constitucional da UE, sob um ponto de vista nacionalista ou "soberanista", seja de direita seja de esquerda, tem que ver com a utilização da noção de "constituição", termo este que, a seu ver, só pode ser usado em relação ao Estado, pelo que a sua utilização no caso da UE só poderia ser um equívoco ou, então, esconder a vontade de criar um super-Estado europeu à custa da soberania dos Estados-membros. Importa considerar este argumento.
É evidente que o chamado "tratado constitucional" é antes de mais um tratado internacional. Mais isso não preclude à partida a sua natureza constitucional. O "poder constituinte" pode revestir muitas formas, inclusive a forma "contratual". Há mesmo constituições aprovadas por tratado internacional, como sucedeu com a actual Constituição da Bósnia-Herzegovina, saída dos acordos de Dayton. A própria Constituição dos Estados Unidos da América foi elaborada e aprovada numa "convenção" composta por representantes dos Estados-membros da confederação preexistente e depois ratificada internamente pelos mesmos. Por isso, uma coisa é a forma do instrumento jurídico, outra coisa a natureza constitucional do texto normativo em causa. Ou seja, o "tratado constitucional" da UE pode ser simultaneamente um tratado, quando à sua forma, e uma Constituição, quanto ao seu conteúdo, enquanto "lei fundamental" de uma entidade política autónoma dotada de certos traços típicos de "estadualidade", mesmo sem ser um Estado.
Aliás, se estamos formalmente perante um tratado, negociado e aprovado pelos governos dos Estados-membros no âmbito da conferência intergovernamental (CIG), e agora sujeito a aprovação e a ratificação interna pelos órgãos competentes dos mesmos Estados, de acordo com o paradigma das convenções internacionais, seguramente que a sua formação revestiu, porém, alguns traços pouco consentâneos com uma visão puramente internacionalista ou intergovernamentalista. O tratado foi em grande parte elaborado fora do quadro de negociações intergovernamentais, no seio de uma "convenção", onde os representantes dos governos eram minoritários, havendo uma forte representação do Parlamento Europeu e da Comissão Europeia e uma representação ainda mais vasta dos parlamentos nacionais, o que sucedeu pela primeira vez na aprovação de tratados da CE/UE. A participação de representantes da própria UE e dos parlamentos nacionais é completamente estranha ao paradigma intergovernamentalista dos tratados internacionais. Se a isso acrescentarmos que o texto foi posteriormente aprovado pelo Parlamento Europeu, acentuando a componente de "autoconstituição" da UE, fácil é verificar que estamos perante um procedimento novo, que procurou mimetizar elementos de constitucionalismo transnacional do passado.
De resto, o Tratado Constitucional limitou-se a desenvolver e aprofundar os traços paraconstitucionais preexistentes na arquitectura da UE, como entidade política a se, dotada de atribuições próprias, de uma ordem jurídica autónoma, de protagonismo na cena internacional, etc., que vêm desde, pelo menos, o Acto Único Europeu (1987) e principalmente desde o Tratado de Maastricht, ou da União Europeia (1992). Entre elas, contam-se o primado do direito da União sobre os direitos nacionais, o alargamento das atribuições da UE para fora da esfera económica (projecto da integração política), o aumento dos poderes do Parlamento Europeu, designadamente no plano legislativo, a generalização das votações por maioria (qualificada) em vez da unanimidade, a cidadania europeia, a "comunitarização" da área da justiça e assuntos internos (JAI), a instituição da política externa e de segurança comum (PESC), a criação de um representante externo da UE, o treaty making power externo da UE, a aprovação da Carta de Direitos Fundamentais, etc. O recurso a uma explícita terminologia constitucionalista representou uma propositada vontade de se assumir como um passo qualificativo em frente na institucionalização da UE como poder político autónomo, embora sem prejudicar a existência nem o cerne da soberania dos Estados-membros (consagrando mesmo um direito de saída unilateral da UE).
Mas, independentemente deste Tratado Constitucional, desde há muito que a doutrina fala no "constitucionalismo" e no "direito constitucional" da UE. Já em 1981 o conceito de "constituição transnacional" foi invocado a propósito da então CEE. E desde essa altura a conceptologia constitucionalista tornou-se cada vez mais frequente, sobretudo depois do Tratado da UE (1992). Existem hoje numerosos escritos sobre a "constituição europeia" e vários manuais de "direito constitucional europeu", incluindo em Portugal. O primeiro grande teorizador da Constituição europeia entre nós foi, aliás, Francisco Lucas Pires, da Universidade de Coimbra, há quase uma década, antes de qualquer projecto de tratado constitucional.
A compreensão da CE/UE em termos constitucionais tornou-se inevitável praticamente desde o princípio, na medida em que ela não podia ser cabalmente concebida e compreendida em termos de direito internacional e de organização internacional, dada a existência de um poder legislativo e de um poder judicial próprios, com incidência directa sobre os direitos e obrigações dos particulares (e não somente dos Estados). Depois, quer por via da jurisprudência criativa da Tribunal de Justiça (a quem se deve por exemplo a explicitação do princípio da primazia da ordem jurídica comunitária), quer sobretudo por via dos sucessivos avanços da integração europeia (ampliação de atribuições, decisões por maioria, eleição directa do Parlamento Europeu, poderes legislativos deste, cidadania europeia, mercado único, moeda única, abolição das fronteiras, justiça e segurança interna, PESC, Carta de Direitos Fundamentais, etc.), foram-se acentuando os traços insusceptíveis de serem compreendidos no quadro do direito internacional, reclamado por isso uma leitura em chave constitucional.
Porventura o principal impulso da CE/UE no sentido de uma entidade constitucional autónoma em relação aos Estados-membros consistiu na eleição directa do Parlamento europeu (acentuando a vertente não intergovernamental) e, depois, na criação da cidadania europeia (Tratado de Maastricht) e no desenvolvimento de uma teoria de direitos fundamentais face às instituições comunitárias (por acção da jurisprudência do Tribunal de Justiça e, depois, pela aprovação da Carta de Direitos Fundamentais). Por essas vias, a CE/UE deixou de ser somente uma associação/união de Estados, para passar a ser também uma união de cidadãos, com direitos protegidos contra as instituições da CE/UE. A CE/UE não é evidentemente um Estado, mas também (já) não é uma simples associação de Estados.
A ideia de que a noção de Constituição está exclusivamente vinculada à noção de Estado, não podendo ser usada em relação a entidades políticas transestaduais, está ligada à tradicional concepção "vestfaliana" do Estado, como única entidade politicamente soberana na ordem externa. Porém, na actualidade, essa noção do Estado está ultrapassada e não resiste à emergência de estruturas supranacionais dotadas de alguns traços que tradicionalmente eram associadas à "estadualidade", como o poder legislativo, poderes judiciais, poderes fiscais, poderes de contratação internacional, separação de poderes, rule of law, direitos fundamentais, judicial review, etc. Actualmente, a noção de constituição e de constitucionalismo é relevante e fecunda em contextos muito mais amplos de que um estreito constitucionalismo "estatista" e nacionalista se agarra a defender.
Hoje penso que não foi vantajosa a utilização da noção de constituição a propósito do novo tratado da UE, que pouco acrescenta e que deu argumentos desnecessários aos nacionalismos constitucionais de todos os matizes. Mas, com ou sem Tratado Constitucional, o constitucionalismo europeu já aí está desde há muito, e veio para ficar.
Professor universitário

.

.

.

E que tal um pouco de bom senso?

Teresa de Sousa / ID / id

.

A França, que está no centro da crise europeia, para o bem e para o mal, parece ter uma única preocupação imediata: diluir as suas responsabilidades. Só isso permite explicar a extraordinária teimosia com que o velho "motor" europeu parece acreditar que a melhor solução para a crise é prosseguir tranquilamente o processo de ratificação. Tudo isto seria patético se não fosse de mau agouro

1.Nada até hoje nos dá razões para acreditar que o Conselho Europeu de quinta e sexta-feira, em Bruxelas, pode vir a ser uma oportunidade de demonstrar perante os cidadãos europeus algum sentido de responsabilidade e de bom senso.
A Europa está mergulhada numa crise suficientemente séria para exigir uma profunda reflexão sobre o seu futuro. Este é o ponto de partida que nenhum discurso optimista ou nenhuma manobra de bastidores deveria tentar obscurecer. Não foram apenas os franceses e os holandeses que rejeitaram um Tratado Constitucional que, aos seus olhos, representava a Europa que não querem. Noutros países com referendos marcados, as sondagens revelam o mesmo mal-estar, não importa se as razões possam ser outras, confirmando plenamente o risco de contágio que muita gente previa e confirmando que a Europa tem um problema com os seus cidadãos.
Nada seria mais perigoso e mais desastrado para reconquistar a confiança dos europeus do que montar uma grande encenação em Bruxelas destinada a minimizar o significado da crise ou disfarçar as suas razões mais profundas com a procura apressada e pouco convincente de meia-dúzia de bodes expiatórios.
Mas a tentação de o fazer é grande. E pelas piores razões.

2. O mínimo de racionalidade levaria a admitir que caberia à França e também à Holanda tirarem as conclusões dos resultados dos seus referendos e participarem na procura de uma solução europeia para ultrapassar a crise. Ouvindo Jacques Chirac (ou lendo a imprensa francesa), nada disso parece ter a menor relevância. Pelo contrário, se há uma crise europeia, ela tem a sua origem no sítio do costume, na pérfida Albion, na "decisão unilateral" de Londres de suspender o seu próprio processo de ratificação...
A mistificação é, naturalmente, intencional e tem o patrocínio de Berlim. A França, que está no centro da crise europeia, para o bem e para o mal, parece ter uma única preocupação imediata: diluir as suas responsabilidades. Só isso permite explicar a extraordinária teimosia com que o velho "motor" europeu parece acreditar que a melhor solução para a crise é prosseguir tranquilamente o processo de ratificação. Tudo isto seria patético se não fosse de mau agouro.

3. A estratégia "diluidora" de Paris e de Berlim passa também por transformar o orçamento plurianual da UE para 2007-2013 em tábua de salvação destinada a não deixar ver o naufrágio.
É verdade que um acordo sobre as novas perspectivas financeiras seria positivo. A União daria de si própria uma imagem mais favorável de capacidade de decisão e de responsabilidade. Seria também uma mensagem positiva para os novos Estados-membros e para as suas legítimas expectativas europeias, depois de se terem visto apontados a dedo pelos eleitores franceses e holandeses como os responsáveis por todos os seus males.
Mas isso não chega para apagar a verdadeira crise. E acresce que a tentativa de reduzir a impossibilidade de um acordo à questão da rebate britânica não é tão inocente nem tão justa como possa parecer à primeira vista. Provavelmente, Tony Blair não se deixará encurralar pela manobra e acabará por ceder o necessário para não ficar isolado. Até porque há muitos e bons argumentos nesse sentido, que se prendem com a riqueza do seu país (com o terceiro mais alto rendimento per capita da UE) e, sobretudo, com a necessidade de distribuir por todos e não apenas por alguns os custos do alargamento.
Mas muitas das coisas para as quais o Governo britânico chama a atenção deviam ser debatidas de uma vez por todas. Por exemplo, a que título o orçamento da União está, e estará pelo menos até 2013, refém da PAC, cujos maiores beneficiários (a maior fatia cabe à França) são, no geral, os países mais ricos. A que título, nas actuais circunstâncias europeias, os fundos estruturais devem continuar a ir também para as regiões mais pobres dos países ricos, em vez de se concentrarem nos países pobres? Valia certamente a pena ver um pouco para além da conveniente rebate britânica e promover uma discussão mais séria sobre um orçamento comunitário que reserva 46 por cento das suas verbas para manter uma agricultura subsidiada que ocupa 4 por cento da população europeia e que é, ao mesmo tempo, a maior máquina de destruição dos mercados agrícolas dos países mais pobres do mundo, contribuindo com enorme eficácia para que não consigam vencer a espiral da pobreza. Haverá maior irracionalidade?
Mas este é o debate que não convém fazer. Nem à França, naturalmente, nem aos países mais pobres (os novos ou os velhos, como Portugal), muito mais interessados em chegar ao fim com o mínimo de perdas possível (e calcula-se quem tem o poder de distribuir algumas benesses finais...), do que em questões de equilíbrio e equidade.

4. Dito isto, já não restam grandes dúvidas de que a cimeira será o cenário para o confronto entre Tony Blair e Jacques Chirac sobre a responsabilidade da crise, as suas razões e, sobretudo, sobre o futuro da Europa.
Já foi dito e escrito mil vezes: Tony Blair tinha agora a sua grande oportunidade europeia. Dos três "grandes", é o único que mantém credibilidade interna e internacional. Tem tempo à sua frente. Tem planos. Vai presidir à UE a partir de 1 de Julho. Tem uma visão para a Europa. Goste-se ou não dele, tem a capacidade de liderança que tanto falta hoje à União. E tem, também, diante de si um caminho minado e dois adversários, Chirac e Schroeder, unidos mais pelo desespero da sobrevivência política do que por qualquer visão ambiciosa para a Europa. Não lhe chegará dizer, como tem feito, que o problema é a economia. É verdade que muita coisa se joga aí e que a Europa tem de encontrar rapidamente o caminho do dinamismo económico, se quer sobreviver e prosperar na era da globalização, da emergência da China ou da Índia, da teimosa pujança americana. E, em primeiro lugar, se quer salvar o modelo de justiça social que lhe é peculiar e comum (seja na versão anglo-saxónica, seja na versão alemã). Se Tony Blair eleger as reformas económicas e sociais da "agenda de Lisboa" como uma das prioridades da sua presidência, em articulação com os objectivos da própria Comissão e certamente com o apoio de muitos países, isso será positivo.
Não chega, todavia. Para ganhar a Europa, Blair tem de ter uma ideia sobre a sua identidade política. Tem de saber o que pode e deve ser retomado do exercício da Constituição para facilitar a integração dos novos membros, para melhorar a transparência e a democraticidade das decisões europeias e para dar à UE mais e melhores instrumentos de acção externa. Blair tem de dar à Europa um propósito político. Que os seus cidadãos possam compreender e os seus parceiros europeus possam apoiar. É essa agora a sua "missão".
Se for hábil pode não estar sozinho. Haverá vinte e cinco países à volta da mesa. Alguns, como a Espanha, estão numa posição privilegiada para desempenhar um papel positivo. José Luis Rodríguez Zapatero é um líder forte internamente, preside a um país que sufragou amplamente a Constituição europeia, que tem uma economia dinâmica. Portugal também não tem qualquer razão para remeter-se a cálculos defensivos. José Sócrates dispõe de uma maioria invejável pelos padrões europeus, já mostrou internamente a coragem suficiente para ser levado a sério, é o líder de um país da "velha Europa" que, com a Espanha, é a prova viva das extraordinárias virtualidades do projecto europeu. Uma iniciativa ibérica seria útil e há hoje muita gente em Bruxelas a reconhecê-lo.
Jornalista

.

.

.

Prudência e bom senso

José Manuel Fernandes / ID / QI 16JUN05

.

É prudente aceitar uma menor eficiência nos processos de decisão da UE para evitar o divórcio entre as elites "iluminadas" e as opiniões públicas

.

Na Europa ocorreu, com os referendos francês e holandês, um terramoto. Aqui mesmo o escrevi, o mesmo dizia domingo passado, em entrevista ao El Pais, Felipe Gonzalez. Só que, quando ocorre um terramoto, não se pode discutir a sua evidência, como ele sublinhou: tem é de se avaliar a sua magnitude, algo que até anteontem alguns líderes europeus se obstinavam a não fazer - incluindo Portugal. Ontem, porém, tornou-se claro que a maioria dos líderes que hoje iniciam uma decisiva cimeira em Bruxelas já entendeu que sem uma pausa não se pode continuar a avançar alegremente num processo de ratificação de um tratado em torno do qual se ergue uma onda de rejeição.
Gonzalez gostaria que essa pausa, que também defende, não correspondesse a uma paralisia e que fosse curta. É duvidoso que possa ser curta, mas existe um caminho para evitar que a actual crise corresponda a uma paralisia sem fim à vista. Esse caminho pode não agradar a muitos, mas foi ontem sugerido, com grande lucidez e riqueza de argumentos, pelo colunista do Financial Times Martin Wolf: é o de aceitar que a ideia de uma "integração sempre maior" das políticas europeias deve ser abandonada. Por falta de condições e por que, nos dias que correm, isso é não só mais democrático, como mais realista e melhor para a economia europeia no seu conjunto.
Na verdade, para Martin Wolf tornar mais eficiente o funcionamento da União Europeia é torná-lo menos democrático, pelo que é preferível alguma confusão e aceitar a necessária diversidade das políticas nacionais, se não quisermos que os eleitores se revoltem - como se estão a revoltar.
Na segunda-feira, no mesmo jornal, o prémio Nobel da Economia Amartya Sen, defendera que democracia é, antes do mais, "governar pela discussão" e que as eleições e os referendos são apenas uma parte dessa discussão, a qual exige um espaço público alargado - e não apenas elites iluminadas - capazes de identificarem e debaterem as políticas comuns. Algo que não existe na Europa, onde 460 milhões de cidadãos vivem em 25 nações diferentes, com línguas, culturas e tradições políticas muito diversas. Votar de vez em quando não resolve o problema da ausência de uma real troca de ideias entre todos, a não ser para dizer "não". E repetir votações as vezes que forem necessárias até que os eleitores votem de acordo com o desejo das elites é o regresso a uma das ideias mais perigosas do iluminismo francês, a ideia de uma "vontade geral" definida como um bem comum independente dos interesses dos indivíduos, tal como a formulou Jean-Jacques Rousseau.
Sendo assim, haverá que aceitar processos de decisão mais complexos, mais morosos e, sobretudo, aceitar que algumas políticas não podem, no curto prazo, ser unificadas e aplicadas de cima para baixo. O problema não é só os políticos nacionais utilizarem Bruxelas para imporem aos seus países políticas que julgam necessárias, mas não têm a coragem de assumir perante os eleitores: o problema é que, como defende Martin Wolf, "em muitas áreas a Europa conseguirá melhores resultados, se cada país for autorizado a decidir autonomamente".
Esta ideia, contraditória com a da "integração sempre maior", é também contraditória com o Tratado Constitucional e implica aceitar uma menor eficiência e mais confusão nos processos de decisão, mas evita o definitivo divórcio entre as elites mais ou menos iluminadas e as opiniões públicas. E resulta de uma importante qualidade em política: actuar com prudência e bom senso.

.

.

.

A ditadura do esquecimento

A opinião de GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS, DEPUTADO DO PS / ID / id

.

Bem sabemos que a União Europeia é uma construção inédita, instável, insegura e imperfeita. Temos também consciência de que a história europeia foi sempre feita de conflitos e diferenças. O velho continente tem várias culturas, várias línguas, várias identidades. Se é verdade que há raízes comuns de vária índole - religiosas, culturais, linguísticas, literárias, artísticas (quem é Homero senão um velho pai fundador da nossa civilização?) -, não é menos certo que a história tem trazido à tona egoísmos, conflitos e divergências. Os cépticos e os cínicos preferem, por isso, dizer que os europeus estão condenados a não se entender. Daí o culto sacrossanto do Estado-nação para uns e do mercado global para outros. E o mais curioso é que os dois argumentos gémeos encontram-se e completam-se, misteriosa e estranhamente. O Estado-nação não morreu nem morrerá tão cedo, mas os que teimam em julgá-lo um absoluto arriscam-se (esses sim) por irrealismo a apoucá-lo e a reduzi-lo a uma perigosa insignificância. O Estado de direito é uma base fundamental que não pode nem deve ser esquecida, desde que saibamos enriquecê-lo e completá-lo com instrumentos eficazes, através da abertura de fronteiras.
Como lembrou há dias Felipe Gonzalez, numa magistral intervenção, no cenário inspirador dos Jerónimos, nada compreenderemos da realidade actual se não nos lembrarmos que o Muro de Berlim não caiu por acaso, e que o sucesso do projecto europeu teve nisso um papel fundamental. Do mesmo modo, caminharemos para o vazio, disse ainda, se não entendermos que não podemos continuar a olhar para os nossos problemas internos sem nos preocuparmos com o essencial: o que queremos ser como projecto activo e relevante na ordem internacional. Temos de compreender os novos sinais da opinião pública europeia que desperta. Ela deseja, a um tempo, a prosperidade europeia (e uma ideia de justiça distributiva eficaz) e a segurança atlântica. Eis o que temos de ter bem presente, em vez de julgarmos que há uma homogeneidade interpretativa. A Europa precisa de uma síntese actuante - que tenha resposta justa para uma globalização com efeitos contraditórios, desde o agravamento das desigualdades, a exigir maior cooperação política de natureza supranacional (mais Europa política e social), até ao risco de redução de bem-estar e dos privilégios das sociedades ricas (pela emergência do medo do outro, da ameaça da imigração, etc., etc.).
O fantasma do super-Estado europeu é acenado, assim, sistematicamente, para tentar criar condições favoráveis ao reflexo condicionado do proteccionismo. Eis por que um certo soberanismo emerge, às vezes puramente formal, esquecido de que hoje os parlamentos nacionais vão sendo esvaziados de poderes, sem que haja uma reforma séria e corajosa que ponha sobre a mesa o tema dos poderes e das competências da União, dos Estados, dos governos e dos parlamentos. Só uma União de direito poderá contrariar o super-Estado, através da legitimidade democrática e do equilíbrio. Curiosamente, quase todos omitem o esforço muito sério, antes sem paralelo, no sentido do reforço dos parlamentos nacionais e da concretização política e jurisdicional do princípio da subsidiariedade... Percebe-se, porém, que a confusão seja um método para lançar as maiores suspeitas sobre uma reforma necessária da União Europeia. Quem duvida do facto de ser insustentável continuar a ter instituições criadas para uma Comunidade de seis a funcionar numa União de 25? Quem duvida de que a União Monetária só poderá tornar-se uma União Económica se houver coordenação de políticas de investimento e de emprego, de desenvolvimento e de coesão económica, social e territorial? Quem duvida de que só uma União Política poderá concretizar uma parceria euro-atlântica entre iguais - que nada tem a ver com a ilusão de criar uma União Europeia como potência concorrente dos Estados Unidos?
E se muitos dos que dizem defender a Europa, mas não esta União Europeia (sem perceber o ridículo em que caem, já que não está na sua mão deixar de ser europeus, facto insofismável), procuram impor uma nova forma de "correcção política" centrada na ideia falsa segundo a qual os pais fundadores da Comunidade Europeia só desejariam uma união aduaneira com um cheirinho político, puro engano. A verdade é que a "integração europeia" só fazia sentido para esses "pais fundadores" se fosse política (leiam-se os documentos e a violenta reacção de Monnet perante as vicissitudes de 1954). Mário Soares recordou-o nos Jerónimos, vinte anos depois de um momento histórico e de outras incompreensões. E se temos de estar abertos ao que for possível e realizável, ouvindo a opinião pública europeia, o certo é que será muito difícil encontrar um denominador comum sério entre o medo do alargamento e de mais Europa e a vontade de ir mais depressa.
Temos de perceber que o ponto crítico é o de haver Europa política a menos, o de haver míngua de justiça distributiva e de federalismo fiscal. Os cínicos e os cépticos poderão repetir que a Europa é uma ilusão, no entanto a ditadura do esquecimento que desejam já teve efeitos devastadores no passado. Falo da crise dos anos vinte e trinta e dos efeitos dramáticos da falta de um espírito europeu activo. Falta liderança. Falta visão de futuro. A navegação à vista diplomática ou a soma das boas intenções levar-nos-á ao desastre. Os riscos da fragmentação e da guerra, da depressão económica e do descontentamento social existem. Se nada fizermos, o pior acontecerá. Se fizermos alguma coisa no sentido da democracia, da justiça e da cooperação, poderá ser que o evitemos...

.

.

.

Um salto em falso

A opinião de PAULO DE PITTA E CUNHA, PROFESSOR DA FACULDADE DE DIREITO DE LISBOA / ID / id

.

Defensores do Tratado constitucional (como Vital Moreira, no seu artigo O nome e a coisa, PÚBLICO, 14/06/05), têm razão quando recordam que a Constituição europeia já tinha traços constitucionais, mesmo antes do recente projecto, agora ferido de morte pelos eleitorados da França e da Holanda.
Só que a sua análise faz supor que o Tratado constitucional representa simplesmente mais um passo, e um passo bem medido, ao longo do caminho que ficou definido com o Tratado de Maastricht. Ora, se a União Europeia, desde este último diploma, já comporta a acentuação de elementos supranacionais, sem embargo de continuar a ser um híbrido, em doses variáveis, consoante a matéria e o tempo, de supracionalismo e intergovernamentalismo, a verdade é que com a Constituição que os Governos dos Estados membros aprovaram dar-se-ia uma grande mudança qualitativa, reforçando-se intensamente as características estatais da construção e, mesmo que os seus defensores não o concedam, abrindo caminho para o super-Estado.
A utilização da noção de Constituição não foi apenas nominalista, pois se visou o aprofundamento dos traços federais por forma tão intensa que se tratava de um grande salto em frente, e não o passo razoável que os partidários do projecto (excepto os federalistas extremos) nele parecem querer ver. E é tão grande aquele salto, que não deparou com terreno firme para a recepção, levando aos desaires registados em França e na Holanda e à suspensão da organização do referendo britânico.
O salto de Maastricht processara-se com bem maior equilíbrio no duplo campo da integração política e da integração económica, e mesmo assim não faz mal lembrar que o Tratado de 1992 só passou em França pela mais ínfima margem.
Veio agora o Tratado constitucional assinalar um puro e arrogante exercício de integração política, nada dizendo de novo quanto às matérias económicas - todavia, bem necessitadas de revisão. Provavelmente, a não utilização do termo "constituição" não teria evitado a queda. Mas, pelo menos, ter-se-ia tornado menos gritante o carácter artificial do salto em falso que acaba de ser dado na construção europeia.

.

.

.

Sem comentários:

free web counters
New Jersey Dialup