terça-feira, junho 05, 2012

MEMÓRIA DO TEMPO QUE PASSA - II




Completaram-se ontem 34 anos, foi no DM 04.06.1978: morreu em Santa Bárbara, Califórnia, Jorge de Sena, engenheiro civil, escritor, poeta, ficcionista, dramaturgo, ensaísta, crítico, tradutor e professor universitário português, a cinco meses de completar os 59 anos.
Continuação…

Nos anos 50 a produção literária de Jorge de Sena cresce em complexidade, extensão e em profundidade, sendo de então algumas das suas mais conhecidas obras poéticas (Metamorfoses, Evidências, Fidelidade). Como é de então a sua primeira tentativa de dramaturgo (O Indesejado) e, ainda, a sua organização da 3ª série antológica das Líricas Portuguesas. [Info: Sena]

O volume Evidências foi entusiasticamente saudado por David Mourão-Ferreira como uma “obra de categoria excepcional”.

Desta vergonha de existir ouvindo é o segundo soneto do livro Evidências (1955). Em geral o soneto não figura nas "entradas" de Jorge de Sena no Portugal Democrático. «No entanto, como lembra Douglas Mansur em seu verbete, é com estes 14 versos a sua primeira "aparição" no periódico: na página 5, do Portugal Democrático nº 29, de Outubro de1959, encimada pelo título de "Uma frente de batalha chamada poesia", ao lado de mais 6 poemas, assinados» por vários nomes como O'Neill, Gomes Ferreira e outros. «De organizador anónimo, a sucinta antologia (com textos datados de 1939 a 1958) é assim justificada: "Colhidos de livros e revistas publicados em Portugal, os poemas ora apresentados evidenciam a prolongada resistência oferecida pelos poetas à desumanização da sociedade portuguesa levada a efeito pelo regime de Salazar". Cumprem-se, deste modo, as directrizes do mensário, que, desde o "programa" estampado em seu primeiro número, declarava indissociável o político do cultural: "a cultura portuguesa, que nas últimas décadas tantos atentados tem sofrido, merecer-nos-á especial carinho".»

No prefácio, recorda Sena que, «uma vez impresso, As Evidências "foi logo apreendido pela PIDE [...] e só pode ser distribuído um mês depois, após repetidas visitas à Censura [...]. O livro era, além de subversivo, pornográfico". Para a imputada "subversão", certamente este segundo soneto muito teria contribuído...»:

Desta vergonha de existir ouvindo,
amordaçado, as vãs palavras belas,
por repetidas quanto mais traindo
tornadas vácuas da beleza delas;

desta vergonha de viver mentindo
só porque escuto o que dizeis com elas;
desta vergonha de assistir medindo
por elas as injúrias por trás delas

ao mesmo sangue com que foram feitas,
ao suor e ao sémen por que são eleitas
e à simples morte de chegar-se ao fim;

desta vergonha inominável grito
a própria vida com que às coisas fito:
Calai-vos, ímpios, que jurais por mim!

12.02.1954

Da obra Fidelidade deixo os seguintes poemas do autor: 

Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como a só presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
com outra vida. Ou como solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?           

Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos se voltassem.

26.08.1956

Não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.     

Eu não posso senão ser
desta terra em que nasci.
Embora ao mundo pertença
e sempre a verdade vença
qual será ser livre aqui
não hei-de morrer sem saber     

Trocaram tudo em maldade,
é quase um crime viver.
Mas, embora escondam tudo
e me queiram cego e mudo,
não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade    

09.12.1956

E de Metamorfoses recolhi o seguinte:

Camões dirige-se aos seus contemporâneos         

Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E, mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.     

11.06.1961
[Ler Jorge de Sena]

Quanto às Líricas Portuguesas, trata-se, agora, da 3ª série de um projecto, para já, trisseriado que visa apresentar uma colectânea da poesia lírica portuguesa desde as suas origens à actualidade.
A 1ª série abrange autores desde os cancioneiros medievais até ao 1º quartel do séc. XX e foi organizada por José Régio. A 2ª série, compilada por Cabral do Nascimento, abrange autores nascidos entre 1859 e 1908.
A 3ª série, organizada por Jorge de Sena, foi publicada em 1958. Segundo Sena explica no prefácio à 1ª edição desta série, ela compreende duas partes: uma primeira que reúne oito autores que deveriam ter figurado na 2ª série (entre eles, Irene Lisboa, Almada-Negreiros e António Botto) e uma segunda parte que engloba 65 poetas nascidos entre 1909 e 1929. Entre eles: António Gedeão, Manuel da Fonseca, Joaquim Namorado, Ruy Cinatti, Mário Dionísio, Fernando Namora, Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner, Natércia Freire, Eugénio de Andrade, Mário Cesariny de Vasconcelos, Natália Correia, Pinheiro Torres, Sebastião da Gama, Ramos Rosa, O'Neill, Mourão-Ferreira e Ana Hatherly.

A atitude humanista de Jorge de Sena e o seu “espírito de inconformismo contra a ditadura fascista levaram-no, em 1959, após o envolvimento numa tentativa falhada de golpe de Estado militar contra o regime salazarista, a optar por um exílio voluntário no Brasil”, onde, por razões profissionais, se naturalizou brasileiro em 1963. [Info: Sena] E também daqui, com a instalação da Ditadura Militar em Março de 1964, ao sentir a liberdade ameaçada, emigra para os EUA.

No Brasil vive 6 anos como professor universitário de Literatura Portuguesa e de Teoria da Literatura, em S. Paulo. [Info: Sena]. Simultaneamente publica uma série de ensaios, como o Da Poesia Portuguesa, e desmultiplica-se em congressos e conferências várias a par da redacção do periódico Portugal Democrático, onde denuncia a ditadura da lusa pátria. É aí que, em 1961, publica o primeiro volume da sua obra poética completa, tendo no ano anterior publicado o seu primeiro livro de ficção, Andanças do Demónio (contos), e em 1964 faz o doutoramento em Letras, defendendo a tese Os Sonetos de Camões e o Soneto Quinhentista Peninsular”, tendo obtido o título académico "com distinção e louvor". No ano seguinte, designadamente por razões políticas, transfere-se para a Universidade do Wisconsin, Madison, nos Estados Unidos, onde seria nomeado professor catedrático de Literatura Portuguesa e Brasileira. E, 5 anos volvidos, migra para a Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, onde, em 1972, viria a ser nomeado chefe do departamento de Literatura Comparada e, em 1975, chefe do Departamento de Espanhol e Português.

Aquando da primeira visita autorizada a Portugal em nove anos de exílio, entre 1968 e 1969, Sena publica os volumes de poesia Arte de Música e Peregrinatio ad Loca Infecta. E no ano da sua morte, 1978, vieram a público, revistos pelo autor, os volumes Poesia II e Poesia III, a que se seguiriam, postumamente, os volumes 40 Anos de Servidão e Post-Scriptum II.

Entretanto dera-se o 25 de Abril e Jorge de Sena, entusiasmado, queria regressar definitivamente a Portugal, ansioso de dar a sua colaboração para a construção da democracia. Visitou, então, o país, que o recebeu com homenagens públicas e onde foi condecorado (como o seria a título póstumo), mas não recebeu qualquer convite para aqui exercer o seu ministério. Desiludido e magoado, voltou aos EU, onde morreria 4 anos depois. [Wiki: Sena]

De Peregrinatio ad Loca Infecta deixo os seguintes versos:

Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,
mágoas, humilhações, tristes surpresas;
e foi traído, e foi roubado, e foi
privado em extremo da justiça justa;          

e andou terras e gentes, conheceu
os mundos e submundos; e viveu
dentro de si o amor de ter criado;
quem tudo leu e amou, quem tudo foi -        

não sabe nada, nem triunfar lhe cabe
em sorte como a todos os que vivem.
Apenas não viver lhe dava tudo.       

Inquieto e franco, altivo e carinhoso,
será sempre sem pátria. E a própria morte,
quando o buscar, há-de encontrá-lo morto.

1961

De entre a sua extensa bibliografia destaco as seguintes obras (algumas já antes referidas): poesia: Perseguição (1942), Coroa da Terra (1946), Pedra Filosofal (1950), Metamorfoses (1963), Peregrinatio ad Loca Infecta (1969) e Conheço o Sal... e Outros Poemas (1974). Teatro: O Indesejado (António, Rui) (1951) Amparo de Mãe e mais Cinco Peças em Um Acto (1974, sendo cada um dos textos incluídos neste volume escrito antes desta data); deixou algumas peças inacabadas. Ficção em prosa: Andanças do Demónio (1960), O Físico Prodigioso (1977), Sinais de Fogo (1979) e Génesis (1983). Ensaios: Da Poesia Portuguesa (1959), O Reino da Estupidez (1961-1978) e Poesia de 26 Séculos (1971-1972). [BU: Sena]
Mais famoso é o seu “romance autobiográfico Sinais de Fogo, adaptado ao cinema em 1995 por Luís Filipe Rocha.” [Wiki: Sena]
Em 1999, foi publicado um livro com inéditos do escritor, Dedicácias, obra que reúne poemas satíricos, quase todos com destinatários identificados, e vários desenhos inéditos.
Em 2002, é publicado
Poesia 26 Séculos de Arquíloco a Nietzche. [BU: Sena]


«Arquíloco foi um poeta lírico e soldado grego que viveu na primeira metade do século VII a.C. (talvez entre anos de 680 a.C. e 645 a.C.). Os antigos colocavam-no em pé de igualdade com o próprio Homero.»  [Wiki: Arquíloco]



… continua amanhã, QA 06.06.2012…

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