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“Fazer filmes é mergulhar até às mais profundas raízes, até o mundo da infância”.
- Bergman
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Com 89 anos, feitos há dias – 14 deste mês – faleceu hoje, no país que o viu nascer, um mago e um guru do cinema: Ingmar Bergman.
Não há ninguém da minha geração – e próximas – de mediana cultura, que não se recorde de Bergman.
Nos anos 50/60 ia-se ver um filme de Ingmar Bergman como quem ia a uma conferência, a uma aula, a uma sessão cultural cujo tema fosse A Infância, A Morte, A Vida, O Amor, O Insondável, A Religião, Deus, A Alegria, A Solidão, A Dor…
Na verdade, os seus filmes abordam geralmente questões existenciais, como a mortalidade e a solidão, e esotéricas, como a fé.
Não se tratava, pois, de um momento de lazer aquele que se passava (sempre, ou quase) no Estúdio do Império (para falar no meu caso, no meu tempo) ou noutra qualquer sala de cinema para ver um filme do cineasta sueco.
Aliás, Bergman não era um realizador. Era um mestre.
Não era um homem de espectáculo, era um didacta muito respeitado
Julgo que muito longe de qualquer ousada classificação, muitos viram em Bergman o maior realizador da história do cinema.
Como não sou expert na matéria, nem sobre ela tenho bagagem suficiente para entrar em comparações, direi que sim, que dos que me é dado conhecer (e enquanto fui frequentador assíduo das manifestações da sétima arte), ele, se não for o maior, será dos maiores.
(Claro que para os versados, dizer que Bergman foi um dos maiores realizadores de todos os tempos – dentro da ainda curta história do cinema – soa a expressão meio lapalisseana… Não obstante isso - e o lugar comum – essa é a verdade)
Bergman foi distinguido com os mais diversos e valiosos prémios que são atribuídos ao cinema.
E não era apenas o trabalho de rara qualidade do realizador que nos atraía, era também o desempenho extraordinário do elenco, de superior craveira, que reunia para interpretar as suas obras.
Por todos, bastará recordar a brilhante performance de uma Liv Ullmann, que o cineasta dirigiu em 10 filmes, e com quem teve um romance, de que nasceu uma filha.
Kathleen Gomes (PÚBLICO) escreveu um dia: “escolham um rosto de entre os muitos rostos que povoaram o cinema de Ingmar Bergman - o de Liv Ullmann estará sempre no alto, acima de todos”.
Ernst Ingmar Bergman, que nasceu em Uppsala, Suécia, na referida data, em 1918, fez a sua iniciação profissional com “um dos patriarcas do cinema sueco, Victor Sjostrom, homenageado em Morangos Silvestres, em que Sjostrom interpreta o protagonista que perde a noção da memória face à iminência da morte” – pode ler-se em ZAZ, no site brasileiro terra.
Conquanto o mundo o reconheça melhor como cineasta de renome e consagração internacional, foi ainda dramaturgo e argumentista de mérito.
Filho de um espartano pastor sectário de Lutero, teve uma infância muito difícil, vivida com uma rígida disciplina, marcada por coacções psicológicas e castigos corporais, temas frequentes na sua obra.
Bergman fez mais de 50 filmes, e mais de 150 produções teatrais (incluindo guiões), “onde seus temas principais eram Deus, a morte, a vida, o amor, a solidão, o universo feminino e a incomunicabilidade entre casais, tema onde foi pioneiro no cinema. Tornou-se autor completo de seus filmes e renovou a linguagem cinematográfica. Seus primeiros filmes trazem com frequência influências do naturalismo e do romantismo do cinema francês dos anos 30. Alguns chegaram a ser repelidos por causa do erotismo e expressionismo” – descreve Cibele Carvalho Quinelo, da Universidade Federal de São Carlos, Estado de S. Paulo, Brasil.
Da sua filmografia destacam-se, entre vários, «O Sétimo Selo» (de 1956), «Morangos Silvestres» (de 1957) e, o mais recente, «Saraband», (de 2003), em versão digital.
Morangos Silvestres, de que se falou já mais acima, é uma das suas obras máximas, uma homenagem, como se disse, ao seu mestre Victor Sjöstrom, onde este interpreta a figura do Prof de medicina Isak Borg, aposentado, que relembra as passagens mais marcantes da sua vida, numa dramática perspectiva de morte iminente.
O momento alto do filme é o pesadelo do professor na noite que antecede a sua deslocação a Lund, para aí ser homenageado.
A sequência da correria veloz de uma carruagem que transporta um caixão, pelas ruas desertas e vazias da cidade, a perda de uma roda da carruagem, a consequente queda do caixão e o respectivo estrondo, o braço e a mão que dele emergem (e que Borg reconhecem serem dele mesmo), além do enorme relógio sem ponteiros… Tudo são as alegorias bergmanianas duma memória que se esgotou, dum fim que se aproxima, dum tempo incomensurável.
Creio ser esta a passagem mais impressiva, cujo registo se manterá na memória de todos quantos viram o filme. Filme este, aliás, que parece sintetizar toda a “problemática bergmaniana. Desde o problema da infância, do amor e da história, até o de Deus” – comenta Lincoln Secco.
Aliás, este mesmo historiador sustenta: “A filmografia de Ingmar Bergman pode ser vista a partir de três dilemas: a infância, o amor e a história. Dos três elementos, o terceiro é o menos visível. O primeiro foi o mais explorado de maneira consciente. O segundo poderia ser definido mais como a falta de amor ou as sucessivas tentativas de conquistá-lo” (site mnemocine).
“O Sétimo Selo” foi o filme que projectou I. Bergaman internacionalmente. O filme ”foi dedicado a Bibi Andersson e ela, assim como Max Von Sydon, Erland Josephson, Ingrid Thulin, Liv Ullman, Harriet Anderson e Gunnar Bjosrnstrand, que começaram com ele no teatro, se tornaram para sempre "atores Bergmanianos" e seguiram carreiras internacionais” – (cit Cibele Carvalho Quinelo, id).
“O título é uma referência ao capítulo oito do livro das revelações”, explica, ainda, a mesma citada autora. Trata-se de uma história simples, mas carregada daquele esoterismo que caracteriza não só brasileiros como outros povos. E o próprio Bergman, com logo se deixa ver. Um cavaleiro e seu escudeiro voltam das Cruzadas e encontram o seu país, a Suécia, assolado pela peste. Eles encontram-se com a morte e o cavaleiro faz um acordo com ela: só por ela serão arrastados (ele e o seu povo) se, num jogo de xadrez que lhe propôs jogar, ela o vencesse.
“Acredito que Bergman está presente no filme na angústia do cavaleiro que vê sua vida destituída de sentido, e também no ateísmo de seu fiel amigo Escudeiro”, acrescenta a mesma autora. ”O Filme, assim como toda a obra do director no seu início, é considerado neo-expressionista. Os cenários são muito rústicos e simples, a maquiagem é impressionante, e muitas vezes os actores aparecem machucados, ou com dentes podres, desprovidos de qualquer regra de higiene actuais, o que dá mais realismo ao filme” – são ainda palavras de Cibele Quinelo.
(…) “Em matéria de fé, o filme articulou perguntas que [Bergman] não se atrevia fazer: quais eram os sinais verdadeiros de que existia um Deus? Onde estava o testemunho coerente de qualquer benevolência divina? Qual era o propósito da oração? (…)"
“A natureza religiosa da obra de Bergman se manifesta de imediato no filme. Em uma entrevista declarou que utilizava seus filmes para encarar seus temores pessoais. Disse ele: "Tenho medo da maior parte das coisas dessa vida" e "Depois daquele filme ainda penso na morte, mas não é mais uma obsessão", e em O Sétimo Selo ele enfrentou o seu medo da morte. "A Morte está presente todo o tempo, e cada um reage de maneira diferente a ela. Deus e a Morte são os grandes pilares do filme, e em grau menor, mas essencial, mostra seus sentimentos sobre o Amor e a Arte” – escreve ainda, e uma vez mais Cibele C. Quinelo.
Saraband. Depois do seu filme "Cenas da Vida Conjugal", (1973) Ingmar Bergman volta a encontrar as personagens que Liv Ullman e Erland Josephson então personificaram, num filme que ele descreve como "um concerto para uma orquestra sinfónica, com quatro solistas". Trinta anos passaram desde que Marianne e Johan se separaram. Marianne pressente que Johan precisa dela, e não resiste ao impulso de o visitar na sua velha casa de campo.
Relembram, então, a sua vida conjugal, o amor que os uniu, as memórias do que os afastou.
Apesar de todos estes anos sem se verem, é bem patente que a cumplicidade que os caracterizou não havia esmorecido. Marianne conhece, nessa altura, o filho de Johan, Henrik, e a filha deste, Karin. E muito rapidamente compreende que Henrik tem um amor possessivo pela filha e que Johan só sente ódio e desprezo pelo filho. É aí que Marianne se interroga sobre se a sua presença poderá, ou não, atenuar a ansiedade que atormenta Johan.
Trata-se, a um tempo, do filme mais intenso e mais suave, de que falou essa grande surpresa do filme que foi Julia Dufvenius (Karin).
Após uma despedida várias vezes anunciada, este foi, de facto, o último trabalho de Bergman, quando ele já contava 85 primaveras.
Mas doutros filmes temos (os do meu tempo) memória. Todos nos recordamos de “A Fonte da Virgem” (1959), de “Mónica e o Desejo” (1952). Mais recentemente, de “Fanny e Alexandre” (1982).
Quanto à “Fonte da Virgem”, a história desenrola-se na Idade Média. Um casal profundamente religioso tem uma filha (Karin) que encanta toda a gente “com o seu cabelo dourado, olhos azuis e pureza de alma”. Na época era costume as velas serem transportadas para a igreja por uma virgem. Daí que, num Domingo, na sua aldeia, de tal tarefa tenha sido incumbida Karin. Só que, no caminho, ela é assaltada e violada por três homens que ela, à partida, pensara tratar-se de pastores.
A trama desenvolve-se com a tentativa de venda, por parte dos meliantes, das roupas da pobre moça, por acaso e terrível coincidência, aos seus próprios pais. Desencantado e incrédulo com o que Deus lhe reservara para a filha, o pai jurou vingança e não descansou enquanto não a encontrou. E ao consegui-lo presenciou um milagre.
Esta lacónica descrição não permite bem avaliar toda a qualidade técnica do realizador e dos actores. Na verdade, o filme foi o vencedor do melhor filme estrangeiro, ganhando o respectivo Óscar em 1961. Além de ter sido também um dos vencedores do Festival de Cannes, com menção honrosa, no ano anterior.
De “Mónica e o Desejo” escreveu um crítico brasileiro: “onde o verão inunda a trama de sensualidade”.
É a história de uma garota sexy e do seu desejo de evasão. Desejo de uma vida diferente. E com a inevitável moralidade contemporânea: o preço a pagar pelas ilusões…
“Fanny e Alexandre” é a narração da saga de uma família sueca no virar do séc. XIX para o séc. XX.
Segundo os críticos, este trabalho é como que uma síntese de toda a grande obra de Bergman, que lhe valeu, entre outras distinções, três Óscares.
E aí temos a temática habitual de Bergman: a alegria, a dor, a vida, a religião, o sobrenatural…
3 comentários:
Caída aqui, com uma pesada coroa de lembranças. Obrigada, ZL, porque me fizeste andar nos passos desse assombramento que tínhamos nas "tardes clássicas" - e na verdade não era fruição, era uma palestra de vida, morte, mistério religioso, mistério familiar...o mistério da nossa vida todo ali à frente, a preto e branco! Hoje, coloridos que ficaram os nossos sonhos em "Saraband", agradeço a um homem fugaz o que me ensinou com a sua câmara. E agradeço-te a ti esta homenagem a ele. Abraços
Obrigada, Zé Luís! Revisitei Bergman. Percurso fantástico! Magistral!
Um abraço
Amélia
Caro Zé Luís,
Bergman também é (e será sempre!) uma das minhas referências...Alguém que também fez de mim aquilo que hoje sou!
E...horas depois Antonioni!
Os filmes aí estão...E por isso eles continuam vivos!
Obrigado.
Um grande abraço.
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