domingo, novembro 16, 2008

À MARGEM/NO RESCALDO DAS US2008 - III

foto Jason Reed/Reuters
para um post em que
em dois textos se fala de lágrimas...
que imagem escolher?
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“E SE OBAMA FOSSE AFRICANO?”
“E SE OBAMA NÃO FOSSE DO PARTIDO DEMOCRÁTICO?”

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Aconteceu-me o mesmo: recebi de várias origens o belo texto de Mia Couto, em primeiro subtítulo e de que abaixo se fala... E tinha-o na calha para reenvio.
Esta coincidência de tão belas e tocantes miacoutianas palavras acerca de Obama, vindo de tantas procedências, travou-me um pouco o ímpeto de o reenviar, imaginando-o como que um “chover no molhado”. Para mais agora, com mais esta mensagem proveniente dos States, do nosso caro Fernando Almeida Sousa Marques, enviada hoje mesmo.
Mas, claro que segue o texto de Mia Couto, aqui em complemento a semelhante de Fernando Marques, paráfrase daquele do moçambicano escritor.

Já agora, e a propósito desta postagem: quem diz que um Homem não chora?


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um "pequeno" comício do Senador ora Presidente

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“E SE OBAMA NÃO FOSSE
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DO PARTIDO DEMOCRÁTICO?”
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Caros amigos,
Recebi, por várias vias, um lindíssimo texto de Mia Couto (mais um) chamado "E se Obama fosse africano?" que aqui vai para os que ainda não o leram.
Mas apeteceu-me, numa vontade avassaladora, escrever também um texto chamado "E se Obama não fosse do Partido Democrático?"
Trata-se apenas de acrescentar uma reflexão mais. Sobre a mitigada democracia americana. Particularmente para os que descobriram, agora, virtudes, onde, antes, só havia defeitos. E, também, para os que apenas acedem à informação vendida, nos intervalos da publicidade, por noticiários pré-formatados, por comentadores que repetem banalidades, por gente que precisa dessas actividades para sobreviver financeira ou politicamente.
Aqui vai.
...
E SE OBAMA NÃO FOSSE DO PARTIDO DEMOCRÁTICO?

Também chorei na noite eleitoral. Por muitas razões, uma das quais por ter sentido a vitória de Obama como um pouco minha também. Fiz o que pude para ajudar.
Mas...
... a vida política americana é dominada por dois partidos e, tudo o resto, é chamado de "independente". Em todos os discursos dos políticos americanos (o próprio Obama), de jornalistas e comentadores, de gente bem ou mal pensante, o que se ouve é "Democratas, Republicanos e Independentes", ou "Republicanos, Democratas e Independentes", ou mais simplesmente "Republicanos e Democratas".
Se Obama não fosse do Partido Democrático, seria "independente", mesmo que estivesse filiado noutro partido. E, para além disso...
... Não teria falado na Convenção de 2004, a convite de Kerry, fazendo uma brilhante intervenção transmitida em directo pelos principais canais da televisão.
... Não teria sido eleito para o Senado de Illinois.
... Os seus livros talvez não tivessem sido publicados e, se o fossem, não teriam a aceitação que tiveram.
... Seria um entre milhares de activistas pelos direitos cívicos que ninguém conhece.
... Ainda estaria a pagar o empréstimo que lhe foi concedido para tirar o curso em Harvard.
... Dificilmente viria a ser candidato a qualquer coisa, a menos que se inscrevesse num dos muitos Partidos que existem nos EUA. Existem muitos Partidos nos EUA! Alguém sabe?
... Se conseguisse ser candidato a Presidente dos EUA não teria acesso aos meios de comunicação social, como aconteceu com mais de uma dúzia de candidatos (de outros Partidos) de que a maior parte das pessoas desconhece a existência.
... Quando se contassem os votos, deixaria positivamente de existir, porque, como quase toda a gente sabe só havia dois candidatos; tudo o resto não tinha interesse, nem jornalístico, nem cultural, nem social.
...
Talvez estejam a ler com surpresa o que escrevo. No entanto, os que melhor me conhecem não estranharão.
Fez-se História ao eleger Obama.
Mas é bom que se tenha consciência das circunstâncias da História.
É bom, também, que não se considere esse acontecimento como um fim em si próprio, mas como uma etapa mais do processo histórico.
Será bom que a esperança que Obama despertou dê frutos e não estiole. Estarei presente. Mas...
O mundo aguarda. Os abutres também.
...
Um grande abraço,
fernando

x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x

E SE OBAMA FOSSE AFRICANO?

Por Mia Couto
Os africanos rejubilaram com a vitória de Obama. Eu fui um deles. Depois de uma noite em claro, na irrealidade da penumbra da madrugada, as lágrimas corriam-me quando ele pronunciou o discurso de vencedor. Nesse momento, eu era também um vencedor. A mesma felicidade me atravessara quando Nelson Mandela foi libertado e o novo estadista sul-africano consolidava um caminho de dignificação de África.
Na noite de 5 de Novembro, o novo presidente norte-americano não era apenas um homem que falava. Era a sufocada voz da esperança que se reerguia, liberta, dentro de nós. Meu coração tinha votado, mesmo sem permissão: habituado a pedir pouco, eu festejava uma vitória sem dimensões. Ao sair à rua, a minha cidade se havia deslocado para Chicago, negros e brancos respirando comungando de uma mesma surpresa feliz. Porque a vitória de Obama não foi a de uma raça sobre outra: sem a participação massiva dos americanos de todas as raças (incluindo a da maioria branca) os Estados Unidos da América não nos entregariam motivo para festejarmos.
Nos dias seguintes, fui colhendo as reacções eufóricas dos mais diversos recantos do nosso continente. Pessoas anónimas, cidadãos comuns querem testemunhar a sua felicidade. Ao mesmo tempo fui tomando nota, com algumas reservas, das mensagens solidárias de dirigentes africanos. Quase todos chamavam Obama de "nosso irmão". E pensei: estarão todos esses dirigentes sendo sinceros? Será Barack Obama familiar de tanta gente politicamente tão diversa? Tenho dúvidas. Na pressa de ver preconceitos somente nos outros, não somos capazes de ver os nossos próprios racismos e xenofobias. Na pressa de condenar o Ocidente, esquecemo-nos de aceitar as lições que nos chegam desse outro lado do mundo.
Foi então que me chegou às mãos um texto de um escritor camaronês, Patrice Nganang, intitulado: " E se Obama fosse camaronês?". As questões que o meu colega dos Camarões levantava sugeriram-me perguntas diversas, formuladas agora em redor da seguinte hipótese: e se Obama fosse africano e concorresse à presidência num país africano? São estas perguntas que gostaria de explorar neste texto.
E se Obama fosse africano e candidato a uma presidência africana?
1. Se Obama fosse africano, um seu concorrente (um qualquer George Bush das Áfricas) inventaria mudanças na Constituição para prolongar o seu mandato para além do previsto. E o nosso Obama teria que esperar mais uns anos para voltar a candidatar-se. A espera poderia ser longa, se tomarmos em conta a permanência de um mesmo presidente no poder em África. Uns 41 anos no Gabão, 39 na Líbia, 28 no Zimbabwe, 28 na Guiné Equatorial, 28 em Angola, 27 no Egipto, 26 nos Camarões. E por aí fora, perfazendo uma quinzena de presidentes que governam há mais de 20 anos consecutivos no continente. Mugabe terá 90 anos quando terminar o mandato para o qual se impôs acima do veredicto popular.
2. Se Obama fosse africano, o mais provável era que, sendo um candidato do partido da oposição, não teria espaço para fazer campanha. Far-Ihe-iam como, por exemplo, no Zimbabwe ou nos Camarões: seria agredido fisicamente, seria preso consecutivamente, ser-Ihe-ia retirado o passaporte. Os Bushs de África não toleram opositores, não toleram a democracia.
3. Se Obama fosse africano, não seria sequer elegível em grande parte dos países porque as elites no poder inventaram leis restritivas que fecham as portas da presidência a filhos de estrangeiros e a descendentes de imigrantes. O nacionalista zambiano Kenneth Kaunda está sendo questionado, no seu próprio país, como filho de malawianos. Convenientemente "descobriram" que o homem que conduziu a Zâmbia à independência e governou por mais de 25 anos era, afinal, filho de malawianos e durante todo esse tempo tinha governado 'ilegalmente". Preso por alegadas intenções golpistas, o nosso Kenneth Kaunda (que dá nome a uma das mais nobres avenidas de Maputo) será interdito de fazer política e assim, o regime vigente, se verá livre de um opositor.
4. Sejamos claros: Obama é negro nos Estados Unidos. Em África ele é mulato. Se Obama fosse africano, veria a sua raça atirada contra o seu próprio rosto. Não que a cor da pele fosse importante para os povos que esperam ver nos seus líderes competência e trabalho sério. Mas as elites predadoras fariam campanha contra alguém que designariam por um "não autêntico africano". O mesmo irmão negro que hoje é saudado como novo Presidente americano seria vilipendiado em casa como sendo representante dos "outros", dos de outra raça, de outra bandeira (ou de nenhuma bandeira?).
5. Se fosse africano, o nosso "irmão" teria que dar muita explicação aos moralistas de serviço quando pensasse em incluir no discurso de agradecimento o apoio que recebeu dos homossexuais. Pecado mortal para os advogados da chamada "pureza africana". Para estes moralistas – tantas vezes no poder, tantas vezes com poder - a homossexualidade é um inaceitável vício mortal que é exterior a África e aos africanos.
6. Se ganhasse as eleições, Obama teria provavelmente que sentar-se à mesa de negociações e partilhar o poder com o derrotado, num processo negocial degradante que mostra que, em certos países africanos, o perdedor pode negociar aquilo que parece sagrado - a vontade do povo expressa nos votos. Nesta altura, estaria Barack Obama sentado numa mesa com um qualquer Bush em infinitas rondas negociais com mediadores africanos que nos ensinam que nos devemos contentar com as migalhas dos processos eleitorais que não correm a favor dos ditadores.
Inconclusivas conclusões
Fique claro: existem excepções neste quadro generalista. Sabemos todos de que excepções estamos falando e nós mesmos moçambicanos, fomos capazes de construir uma dessas condições à parte.
Fique igualmente claro: todos estes entraves a um Obama africano não seriam impostos pelo povo, mas pelos donos do poder, por elites que fazem da governação fonte de enriquecimento sem escrúpulos.
A verdade é que Obama não é africano. A verdade é que os africanos - as pessoas simples e os trabalhadores anónimos - festejaram com toda a alma a vitória americana de Obama. Mas não creio que os ditadores e corruptos de África tenham o direito de se fazerem convidados para esta festa.
Porque a alegria que milhões de africanos experimentaram no dia 5 de Novembro nascia de eles investirem em Obama exactamente o oposto daquilo que conheciam da sua experiência com os seus próprios dirigentes. Por muito que nos custe admitir, apenas uma minoria de estados africanos conhecem ou conheceram dirigentes preocupados com o bem público.
No mesmo dia em que Obama confirmava a condição de vencedor, os noticiários internacionais abarrotavam de notícias terríveis sobre África. No mesmo dia da vitória da maioria norte-americana, África continuava sendo derrotada por guerras, má gestão, ambição desmesurada de políticos gananciosos. Depois de terem morto a democracia, esses políticos estão matando a própria política. Resta a guerra, em alguns casos. Outros, a desistência e o cinismo.
Só há um modo verdadeiro de celebrar Obama nos países africanos: é lutar para que mais bandeiras de esperança possam nascer aqui, no nosso continente. É lutar para que Obamas africanos possam também vencer. E nós, africanos de todas as etnias e raças, vencermos com esses Obamas e celebrarmos em nossa casa aquilo que agora festejamos em casa alheia.
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1 comentário:

bettips disse...

A verdade. Multiplicada por tantos seres mesquinhos e poderosos. Negros de poder e brancos de desfaçatez.
Aos outros, se não morrem de fome, guerra ou inacção, resta a denúncia, dia a dia, palavra a palavra, livro a livro.
Abç

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