quinta-feira, agosto 16, 2012

MEMÓRIA DO TEMPO QUE PASSA - II




Foi na QA 15.08.1498, completaram-se ontem 514 anos: foi fundada a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. E, a partir daí, as Santas Casas da Misericórdia espalhadas por todo o país.

Continuação…


A originária confraria de Nossa Senhora de Rocamador é a de Rocamadour, no Sul da França, nos “caminhos [franceses] de Santiago”.
Remonta o seu antecessor ao antigo instituto ou congregação hospitalar do Santo-Amador, que de França se estendeu a Portugal, vindo a ser extinto no reinado de Afonso V.

Rocamadour é a localidade do sul de França (Midi-Pyrénées), onde se situava o original e famoso santuário de Santa Maria de Rocamador, uma das principais etapas dos “caminhos” de Santiago (de Compostela), neste caso do caminho francês. [Rocamador: Cantigas Medievais Galego-Portuguesas]
A capela do santuário da Virgem Negra (tal como existe uma no mosteiro de Monserrate, na Catalunha), que fica num complexo de construções monásticas, é atingida por uma escada de 216 degraus, que os peregrinos ainda hoje sobem de joelhos.



Rocamadour é, ainda, uma prova da atracção
dos franceses pela construção de edifícios sobre penhascos

Em 1499 já tinham sido fundadas as Misericórdias do Porto e Évora e, em 1525, aquando da morte de D. Leonor, o número de confrarias já era de 61. Para além do continente, as confrarias expandiram-se pelos territórios ultramarinos administrados pelos portugueses. “Actualmente, existem em Portugal misericórdias em quase todas as sedes de concelho. Destaca-se, sobretudo, a acção da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa [/SCML], que concentra em si os ganhos da Lotaria Popular, do Totobola, do Totoloto, do Euromilhões, do Loto2, do Joker e das Lotarias Clássica e Instantânea”. [Misericórdias 2]

A Lotaria Nacional, explorada pela SCML surgiu em 1939, sucedendo a diversas formas de lotarias que existiram, entre nós, desde 1783 (ano em que D. Maria I concedeu àquela instituição uma lotaria cujos lucros eram repartidos com equidade pelo Hospital Real, pelos Expostos e pela Academia Real das Ciências). Hoje, aqueles lucros são assim repartidos: Direção-Geral do Tesouro: 36,5%; SCML: 63,5%.

O totobola foi criado em 1961 pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa com o objectivo de financiar os serviços de reabilitação de deficientes físicos e, simultaneamente, de gerar receitas para as modalidades desportivas.

O Euromilhões foi lançado em Fevereiro de 2004 em três países, Espanha, França e Inglaterra, aos quais se juntaram mais seis, Portugal, Irlanda, Áustria, Bélgica, Suíça e Luxemburgo, em Outubro do mesmo ano. As receitas do Euromilhões revertem em Portugal, em partes iguais, para o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social e para a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

As Misericórdias, já com mais de cinco séculos de existência em Portugal, são instituições com o intuito de prestar assistência aos necessitados.
E tiveram origem - não no aspecto institucional mas no que respeitante a  ideais e formas de acção - pouco depois dos alvores da Nacionalidade, graças às ordens mendicantes, sobretudo franciscanos e dominicanos, “assim como ao carácter assistencialista de certas corporações medievais”. A referida Confraria de Santa Maria de Rocamador, de carácter hospitalário e originária de França, por exemplo, instalou-se em Portugal em 1189 (segundo uns) ou em 1193 (opinam outros). Tanto os franciscanos como os dominicanos, assim como os Irmãos de Rocamador, prestaram relevantes serviços nos hospitais medievais. Mas devido a alguns abusos levados a cabo nos finais do século XV (já então!) e também por causa da decadência das ordens religiosas e hospitalárias, D. Afonso V, tio e sogro de D. Leonor, “foi obrigado a expulsar a referida Irmandade e a retirar alguns privilégios à Ordem Trinitária, tida como a ordem religiosa que, no século XV, mais se encontrava ligada às práticas de misericórdia e assistência em Portugal”. Mas, como já foi dito, foi D. Leonor, mulher de D. João II, “quem assumiu um papel muito importante e decisivo na fundação efectiva e institucional das Misericórdias portuguesas, tais como elas se nos apresentam histórica e assistencialmente até aos dias de hoje”. Para além de ter fundado as Misericórdias em 1498, como já referido, numa localidade (que viria a chamar-se Caldas da Rainha, em sua homenagem – também já recordado) “fundou um hospital termal que dispunha de cem camas destinado aos pobres”, obra esta que teve a intervenção do cardeal D. Jorge da Costa – o célebre cardeal Alpedrinha. [Misericórdias 1]

Vejamos em síntese, mas de forma o mais completa possível, a história da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa/SCML.
Em mais de 500 anos, a SCML “reuniu um vasto e riquíssimo património histórico e artístico, destacando-se a Igreja de S. Roque, o Museu de S. Roque, o Arquivo Histórico e parte dos edifícios da Instituição, o qual resultou de actos de solidariedade de beneméritos, de doações, heranças e legados”. Além disso “a SCML é também, proprietária de um valioso conjunto de imóveis da arquitectura religiosa e civil portuguesa, património cultural, que vem sendo objecto de estudo sistemático”. [Marcas]
A irmandade era constituída, primitivamente, por cem membros (irmãos), número que era automaticamente renovado, à medida que iam falecendo confrades. "Metade dos irmãos da confraria eram pessoas que realizavam trabalhos manuais, outra metade era constituída por nobres, letrados, clero, entre outras figuras provenientes de sectores importantes da sociedade lisboeta. O provedor (primeiro responsável pela administração das Santas Casas da Misericórdia) tinha que ser alguém” com qualidades de honradez, humildade e paciência. [Misericórdias 1] Qualidades que, naturalmente, devem caracterizar os provedores das actuais mesas das Santas Casas, assim como os membros dos corpos dirigentes da UMP/União das Misericórdias.

Missão da Irmandade era actuar junto dos pobres, dos presos, dos doentes e apoiar a chamada “pobreza envergonhada”.
A todos os necessitados socorria dando pousada, roupas, alimentos, e assistência médica e medicamentosa. [SCML]
“O rápido crescimento do prestígio da Misericórdia de Lisboa trouxe-lhe um maior número de responsabilidades” como a administração do Hospital Real de Todos os Santos, altura em que se dedica, também, à protecção dos enjeitados.

Enjeitados ou expostos eram aqueles que, geralmente com apenas dias ou semanas de vida, eram abandonados pelos pais, duma forma geral numa roda dos enjeitados.

Roda dos enjeitados ou dos expostos: eram cilindros giratórios com uma grande cavidade lateral que se colocavam junto às portarias dos conventos. Inicialmente eram um meio de comunicação entre o interior e o exterior do convento, onde eram colocados objectos pelas pessoas do exterior para as do interior (enclausuradas). Mais tarde começaram a colocar aí crianças enjeitadas, fruto de ligações proibidas, inconvenientes ou filhos de raparigas pobres. [Rodas]

A acção da Misericórdia de Lisboa estendeu-se também ao apoio às órfãs. A sua eficaz acção ficou a dever-se não apenas ao empenhamento e generosa participação dos membros da Irmandade, mas também ao forte apoio e protecção da Coroa. Assim se compreende a concessão de múltiplos privilégios e a dotação de imponentes instalações, como a nova sede da Misericórdia de Lisboa, mandada edificar por D. Manuel I e concluída em 1534, (hoje, igreja da Conceição Velha) para onde se transferiu a originalmente instalada na Sé e, posteriormente, as actuais instalações ao Bairro Alto, no reinado de D. José, em 1768. [SCML]
Ainda também no sé. XVIII, “as dificuldades financeiras levariam a Mesa [V/ mais abaixo] da Misericórdia e os Hospitais Reais de Enfermos e Expostos a solicitar à Rainha D. Maria I a mercê de lhe ser concedida permissão de instituir uma Lotaria anual ‘para acorrer com os lucros della às urgentes necessidades dos ditos dous Hospitaes’ (Decreto de 18 de Novembro de 1783). Parte dos lucros das lotarias beneficiavam também outras instituições pias e científicas”. [id]
Já entrado o séc. XIX, a situação económica-financeira da Misericórdia de Lisboa continuava bastante precária, não obstante as medidas tomadas para a prover dos “meios necessários à condução das suas inúmeras acções caritativas”. Os prédios urbanos que eram sua propriedade e “contribuíam para a receita da Santa Casa, encontravam-se, em grande parte, arrasados ou danificados, designadamente pelo terramoto de 1755. “Mesmo assim, a Misericórdia de Lisboa continuava a ser um modelo para todas as instituições de beneficência, já que o Príncipe Regente D. João (futuro D. João VI), veio ordenar (1806) que as misericórdias do reino passassem a regular-se pelo Compromisso da Misericórdia de Lisboa que, para o efeito, foi reeditado (1818) e amplamente divulgado”. [id]
Nessa instável época, marcada pela Revolução Francesa e pela Guerra Civil, assistiu-se ao declínio da Irmandade. Impressionado com a situação da Misericórdia de Lisboa (1834), o (16º) Duque de Bragança (D. Pedro I, enquanto tal, simultaneamente D. Pedro IV, pai de D. Maria II - 17ª Duquesa de Bragança), “regente em nome da Rainha, procedeu então à nomeação de uma Comissão Administrativa, autorizada a executar as reformas julgadas mais urgentes, prescindindo dessa forma da participação activa dos Irmãos da Confraria da Misericórdia de Lisboa”. [SCML]
Agravado o índice de mortalidade infantil, a Comissão melhorou as condições na Casa dos Expostos. E no respeitante ao recolhimento das Órfãs, foi o mesmo transferido para o Convento de São Pedro de Alcântara, doado à Misericórdia por decreto de D. Pedro IV (1833). [idem]
A verdade é que apesar de todo o mais activo empenho da Comissão, as dificuldades de gestão financeira não diminuíram. Ao contrário, e por mor do “aumento do número de crianças entradas na Roda da Misericórdia de Lisboa (muitas das quais oriundas dos concelhos limítrofes), agravou-se consideravelmente a situação económica da Santa Casa”, embora nesta matéria se tenha criado, em 1853, um “salário ou esmola” a atribuir às mães de menores recursos para criarem os seus filhos, nos 3 primeiros anos de vida. [id]
A pobreza, entretanto, agravou-se e alastrou, pelo que foi instituído o “Conselho Geral de Beneficência, com o objectivo essencial de extinguir a mendicidade. Reformado em 1851, coube-lhe a suprema direcção da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, dos Hospitais de S. José, de S. Lázaro e de Rilhafoles” (o antigo Convento ou Hospital de Rilhafoles, hoje muito alterado, que fica ali na zona do Campo dos Mártires da Pátria - antigo Campo de Santana -, em Lisboa), “da Casa Pia de Lisboa e de outros estabelecimentos. Foi então determinado que a Misericórdia de Lisboa passasse a ser administrada por um Provedor de nomeação régia, dois Adjuntos eleitos pela Irmandade da Misericórdia (o que nunca veio a acontecer) e dois Adjuntos escolhidos pelo Governo. Através do Decreto de 2 de Dezembro de 1851, dissolveu-se a Comissão Administrativa da SCML, nomeada por D. Pedro IV, entrando-se no período da administração por Mesas nomeadas exclusivamente pelo Governo e compostas por pessoas que não faziam parte da Irmandade”.
“As fontes de financiamento da Misericórdia de Lisboa continuavam a ser constituídas, essencialmente, pelos lucros da lotaria, pelo rendimento de prédios e títulos (aplicações financeiras)” e ainda por bens patrimoniais provenientes de heranças, legados e doações”, além de que “foram incrementadas, então, diversas medidas (…)”[SCML]
Em meados do século XIX, verificou-se uma acentuada quebra nos lucros da lotaria. Simultaneamente, em virtude da aplicação das leis de desamortização [ver abaixo], “a Misericórdia de Lisboa viu-se obrigada a vender uma parte significativa dos bens imobiliários e a aplicar o produto da venda em títulos do tesouro. Estes factores, conjugados com a questão dos expostos, conduziram a um agravamento da crise financeira, que só encontrou solução nas reformas levadas a cabo durante o mandato do Provedor Marquês de Rio Maior”, António José Luís de Saldanha Oliveira Juzarte Figueira e Sousa (1836-1891) que, para além de provedor da SCML, também foi Par do Reino e deputado, e ainda presidente da Câmara Municipal de Lisboa. [id]

Leis de Desamortização: tipo de leis que tinham por objectivo acautelar a concentração de bens fundiários (agrários) de mão-morta *. Foi implementado em Portugal a partir da Idade Média, quando a Coroa tentou controlar o crescimento dos bens eclesiásticos. Esta acção foi muito inovadora a nível europeu, cujas medidas de controlo dos bens da Igreja são bastante mais tardias e menos eficazes.
A primeira lei portuguesa sobre a matéria saiu das Cortes de Coimbra (1211) e proibia as corporações religiosas de adquirirem bens fundiários.
Apenas com as reformas do liberalismo, de Mouzinho da Silveira, esta questão conheceu uma solução parcial, que culminou com a nacionalização de uma larga percentagem dos bens de raiz (prédios rústicos ou urbanos) eclesiásticos. De facto, as leis de 1834 são as mais conhecidas, talvez pelo seu radicalismo, visível na alienação do património da Igreja e exclausuramento das Ordens Religiosas. Esta acção apenas foi definitivamente resolvida com a legislação republicana de 1910, em concreto com a célebre lei de separação do Estado e da Igreja. [Desarmotização]

* Bens de mão-morta, bens que não pagam direito de transmissão, por nunca deixarem de existir os seus titulares (possuidores), que são entidades colectivas como hospitais, comunidades religiosas etc.

“Os subsídios concedidos às mães grávidas mais necessitadas, iniciado em 1853, como forma de estimular a criação e desincentivar o abandono de crianças, tornara-se de difícil suporte, até porque este abono não evitava as exposições. A solução passava pela reorganização do serviço e, sobretudo, pela regulamentação da forma de admissão das crianças na Roda, impondo uma efectiva fiscalização”. Estas e outras medidas inovadoras conduziram à drástica redução do número de expostos, logo de despesas. [SCML]
A Misericórdia manteve o serviço clínico externo e alargou o apoio médico a um maior número de pessoas necessitadas, além de que foi implementada uma assistência alimentar à população mais carenciada, com a criação, em Dezembro de 1887, da, mais tarde, denominada Cozinha dos Pobres. [id]
Nos começos do séc. XX a Misericórdia foi incrementando o referido apoio assistencial.


… continua amanhã, SX 17.08.2012…





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