quinta-feira, novembro 29, 2007

MEMÓRIA DO TEMPO QUE PASSA

O ano 2007 [MMVII] do calendário gregoriano corresponde ao:
. ano 1428/1429 dH do calendário islâmico (Hégira)
. ano 2760 Ab urbe condita (da fundação de Roma)
. ano 4703/4704 do calendário chinês
. ano 5767/5768 do calendário hebraico



DE ACORDO COM A TRADIÇÃO, COM O CALENDÁRIO DA ONU OU COM A AGENDA DA UNESCO:
2001/2010 - Década para Redução Gradual da Malária nos Países em Desenvolvimento, especialmente na África.
2001/2010 - Segunda Década Internacional para a Erradicação do Colonialismo.
2001/2010 - Década Internacional para a Cultura da Paz e não Violência para com as Crianças do Mundo.
2003/2012 - Década da Alfabetização: Educação para Todos.
2005/2014 - Década das Nações Unidas para a Educação do Desenvolvimento Sustentável.
2005/2015 - Década Internacional "Água para a Vida".
2007 Ano Internacional da Heliofísica



D. João (VI)

Foi há 200 anos, no Domingo 29NOV1807: fuga da família real para o Brasil: a esquadra levantou ferro, mas ficou pairando frente à barra até às 7 h do dia seguinte, que foi quando Junot entrou em Lisboa (30NOV1807) - era a 1ª invasão francesa (pela linha do Zêzere até Lisboa).

As invasões francesas vêm na sequência do Tratado de Fontainebleau, firmado em 27OUT1807, por Manuel de Godoy e Napoleão.
Em Portugal a regência do reino estava entregue a D. João VI, que a exercia em nome de sua mãe, D. Maria I (26º), incapacitada por demência.
Em Espanha reinava Fernando VII, da Casa de Bourbon. Frederico Guilherme III era o rei da Prússia. Nos EU decorria o mandato do seu 3º presidente, Thomas Jefferson. Jorge IV era o monarca reinante no Reino Unido. No Vaticano pontificava Pio VII (251º).


«Chovia muito. As ruas começavam a transformar-se num lamaçal. Havia gente desorientada por todo o lado, e um movimento inusitado em direcção a Belém. Há tempo que corriam por Lisboa rumores de que a família real estaria a preparar a partida para o Brasil, mas no dia 26 de Novembro de 1807 já não restavam dúvidas a ninguém - a decisão fora, finalmente, tomada no dia anterior numa reunião do Conselho de Estado. Com as primeiras tropas francesas já em Portugal, a família real e grande parte da nobreza corria a Belém e preparava-se para deixar o país» – Alexandra Prado Coelho, Público, 18NOV207.
«No dia seguinte [SX 27], entre as onze e o meio-dia (Pedreira e Dores Costa seguem a versão de Acúrcio das Neves, que consideram a mais plausível), o príncipe regente é o primeiro membro da família real a chegar ao cais - "não havendo ninguém à sua espera, tal a dificuldade de circulação na cidade, e a deficiência na organização do embarque"» - idem, idem.

As condições de tempo, chuva e vento, não abrandavam, impedindo a partida da frota durante dois dias.


UM PAÍS EM GRAVE CRISE.

UM ZOOM DO DESENLACE BURLESCO


As invasões francesas não foram, apenas, o resultado da sede do despotismo napoleónico e das suas ambições imperialistas. Foram, igualmente, a consequência de pactos internacionais que visavam a partilha e o completo domínio deste pequeno País arruinado e destroçado, governado por inábeis, incompetentes, corruptos, ambiciosos e parasitas. (Imagine-se um bando de abutres à disputa de uma carcaça de animal apodrecido!).
Portugal, durante grande parte dos anos de 1700 e as primeiras décadas do séc XIX era essa carcaça de animal sucumbido pelas suas próprias chagas.
Quando em 1807 Napoleão ordena a ocupação militar de Portugal, a família real, Corte, Clero e altos funcionários... não esqueceram o seu patriotismo... Qual quê? Não: tomaram, antes, uma atitude altamente patriótica: puseram-se a salvo, embarcando em vários navios, no Tejo, rumo ao Brasil com os seus e com o seu.
Levaram tudo o que puderam, que não apenas as suas riquezas, comodidades e luxos. Deram eles mesmos início ao grande saque do espólio nacional, que se seguiria nos próximos anos. Arte, livros (bibliotecas inteiras) e outros tesouros mudaram de ares, foram transportados para o Brasil!

«Não eram, a acreditar na descrição feita por Raul Brandão em El-Rei Junot, cenas dignificantes. "Na véspera do embarque [que aconteceu a 27, sendo depois a partida a 29] remexe-se tudo: as roupas, as jóias, as inutilidades. Na casa de este, de aquelle, do Lavradio, do Angeja, do Cadaval, do Alegrete, há gritos, cólicas, desmaios, uma mixórdia de saque e de grotesco - arcas arrombadas, farrapos, lágrimas, desespero. Aferrolha-se e clama-se: - depressa! Depressa!... - Foge tudo, foge toda a gente de representação e de vergonha: fidalgos, ricos, pregadores, poetas obscenos, a côrte, as damas frágeis e inúteis, as figurinhas d"encanto, e as creadas, as pretas, os anões. O drama é idêntico em todas as casas soberbas: enfardela-se, enfardelam-se de mistura objectos indispensáveis, seringas de clisteres, jóias, quadros, inutilidades, vergonhas e riquezas. Depressa! Depressa!"».
imagem do Publicopormenor do embarque para o Brasil
de Nicolas Louis Albert Delerive
MNC
Aliás, não resisto a trazer para aqui mais um relato da tragicomédia que foi esse embarque de suas majestades e de suas reverências, de tantas "irmandades" e de montes de excelências - todos gente prendada, tudo quanto era pestilência -, relato magistralmente feito por Oliveira Martins, (esse "desenlace burlesco" - como ele próprio escreveu) na sua História de Portugal:

"Três séculos antes, Portugal embarcara, cheio de esperanças e cobiça, para a Índia; em 1807 (Novembro, 29[DM]) embarcava um préstito fúnebre para o Brasil. A onda da invasão varria diante de si o enxame dos parasitas imundos, desembargadores e repentistas, peraltas e sécias, frades e freiras, monsenhores e castrados. Tudo isso a monte, embarcava, ao romper do dia, no cais de Belém. Parecia o levantar de uma feira, e a mobília de uma barraca suja de saltimbancos falidos: porque o príncipe-regente para abarrotar o bolso, com louras peças de ouro, seu enlevo, ficara a dever a todos os credores, deixando a tropa, os empregos, os criados, por pagar.
Desabava tudo a pedaços; e só agora, finalmente, o terramoto começado pela natureza, continuado pelo marquês de Pombal, se tornava um facto consumado. Os cortesãos corriam pela meia-noite as ruas, ofegantes, batendo às lojas, para comprarem o necessário; as mulheres entrouxavam a roupa e os pós, as banhas, o gesso com que caiavam a cara, o carmim com que pintavam os beiços, as perucas e rabichos, os sapatos e fivelas, toda a frandulagem do vestuário. Era um afã, como quando há fogo; e não havia choro nem imprecações: havia apenas uma desordem surda. Embarcavam promiscuamente, no cais, os criados e os monsenhores, as freiras e os desembargadores, alfaias preciosas e móveis toscos sem valor, nem utilidade. Era escuro, nada se via, ninguém se conhecia. Os botes formigavam sobre a onda sombria, carregando, levando, vazando bocados da nação despedaçada, farrapos, estilhas, aparas, que o vento seco do fim dispersara nessa noite calada e negra.
Muita gente, por indolência, recusava ir; outros preferiam o invasor ao Bragança, que fugia miserável e cobardemente: ao herdeiro de reis, que jamais tinham sabido morrer, nem viver. Mais de um regimento desobedeceu aos chefes que o mandavam embarcar; e muitos, vendo a debandada, se dissolveram, deixando as armas, dispersando. Outros embarcavam: chegavam ao portaló dos navios já repletos e voltavam para terra, aborrecidos e enjoados de tanta desordem, de tão grande vergonha.
O príncipe-regente e o infante de Espanha chegaram ao cais na carruagem, sós: ninguém dava por eles; cada qual cuidava de si, e tratava de escapar. Dois soldados da polícia levaram-nos ao colo para o escaler. Depois veio noutro coche a princesa Carlota Joaquina com os filhos. E por fim a rainha, de Queluz, a galope. Parecia que o juízo lhe voltava com a crise. "Mais devagar! gritava ao cocheiro; diria que fugimos!" A sua loucura proferia com juízo brados de desespero, altos gritos de raiva, estorcendo-se, debatendo-se às punhadas, com os olhos vermelhos de sangue, a boca cheia de espuma. O protesto da louca era o único vislumbre de vida. O brio, a força, a dignidade portuguesa acabavam assim nos lábios de uma rainha doida!
Tudo o mais era vergonha calada, passiva inépcia, confessada fraqueza. O príncipe decidira que o embarque se fizesse de noite, por ter a consciência da vergonha da sua fuga; mas a notícia transpirou, e o cais de Belém encheu-se de povo, que apupava os ministros, os desembargadores, toda essa ralé de ineptos figurões de lodo. E - tanto podem as ideias! - chorava ainda pelo príncipe, que nada lho merecia. D. João também soluçava, e tremiam-lhe muito as pernas que o povo de rastos abraçava.
A esquadra recebera 15 000 pessoas, e valores consideráveis, em dinheiro e alfaias. Levantou ferro na manhã de 29 [um Domingo], pairando em frente da barra até o dia seguinte, às 7 horas, que foi quando Junot entrou em Lisboa. Os navios largaram o pano, na volta do mar, e fizeram proa a sudoeste, a caminho do Brasil. Enquanto a esquadra esteve à vista, pairando, os altos da cidade, donde se descobre o mar, apareciam coroados de povo mudo e aflito. As salvas dos navios ingleses que bloqueavam o Tejo troavam lugubremente ao longe. O sol baixava, a esquadra perdia-se no mar, ia-se toda a esperança, ficava um desespero, uma solidão... Soltou-se logo a anarquia da miséria, e na véspera da chegada do Anti-Cristo, Lisboa correu risco de um saque.
Napoleão estava burlado. O príncipe D. João, a bordo com as mãos nos bolsos, sentia-se bem remexendo as peças de ouro: ia contente com a sua esperteza saloia, única espécie de sabedoria aninhada no seu gordo cérebro. Bocejava ainda: mas porque o enjoo começava com os balanços do mar. É o que sucede à história, com os miseráveis balanços do tempo: vem o enjoo incómodo e a necessidade absoluta de vomitar.
(Edição da Guimarães, de Lisboa; 16ª edição, de 1972; pp 516 a 518)

Patético!

E quando se toma consciência disto, uma pessoa até se encolhe de vergonha e cora de raiva!
Mas era assim, tal e qual, essa gente! Eram deste jaez os militantes do Portugal absolutista, intolerante e freirático (ou apostólico).
E já agora (porque vem mesmo a propósito): os governantes desses tempos, eram assim caracterizados, de forma sintética, por esse sociólogo e grande historiador da Idade-Média portuguesa que foi Alexandre Herculano:

"São financeiros e barões, viscondes, condes, marqueses, de fresca e mesmo velha data, comendadores, gran-cruzes, conselheiros: uma turba que grunhe, burburinha, fura, atropelando-se e acotovelando-se na obra de roer um magro osso chamado orçamento e que grita Aqui-del-rei!, quando não pode tomar parte no rega-bofe". (Apud Flausino Torres, "Portugal - uma perspectiva da sua História", edição da Afrontamento, Porto, 1973; p 301)

Mas, mesmo após as invasões, a Corte optou, uma vez mais, "pelo superior interesse nacional" (!?): continuar no Brasil - onde a vida era bem mais agradável.
Mais: em 1815, o Brasil foi declarado reino, não colónia. O Rio era agora a verdadeira capital portuguesa e Portugal um território secundário, governado por um regente. Regência inteiramente rendida ao jugo inglês que, a pretexto de garantir segurança (?), comandando o exército, controlava toda a máquina do Estado.
E enquanto as classes dirigentes do velho Portugal absolutista e freirático (ou, na expressão de Oliveira Martins: o velho Portugal Apostólico), gozavam e esbanjavam à tripa forra, lá longe, em terras de Sta Cruz, aqui sofriam-se vexames de franceses, ingleses e espanhóis... Cá, passavam-se enormes dificuldades...

Ah! Mas enquanto tudo isto acontecia... O vírus da liberdade e da democracia germinava. (Não esqueçamos que a Revolução Francesa acontecera 20, 30 anos antes...).

Foi um século (mais de metade dele) de tremendas lutas políticas e sociais, de confronto permanente dos adeptos dum sistema liberal e dos defensores duma aristocracia musculada, do despotismo iluminado, do absolutismo agonizante.

1 comentário:

bettips disse...

Perfeito. Enquadrado no tempo "que querem fazer de conta que esquecem"! Não fogem de barco, são ratos nos porões que adivinham a água...onde é que já vi este filme?
Abçs

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