quinta-feira, março 09, 2006

A PONTE


Há pontes que ligam épocas, eras, fases ou meros períodos da história.

Por exemplo os consulados políticos.

Terminou hoje o mandato presidencial de Jorge Sampaio. Quero, claro, dizer que se atingiu hoje o termo dos seus dois mandatos presidenciais sucessivos.

O “Senhor” (no melhor sentido), o sensato, o culto, o melómano, o tolerante, o sensível, o íntegro... O HOMEM!... Sampaio deu o lugar ao sucessor.

Ainda dentro do mesmo registo, vêm-me logo à ideia as palavras, de ontem, mesmo, de Vital Moreira que eu – julgo que não beliscando a intenção do seu autor – “li”, para além de uma (explícita) constatação relativamente ao presidente cessante também como, nalguma medida, um queixume, ou, vá, um alerta quanto ao empossado: “A primeira exigência de um Presidente é ser uma pessoa informada, educada, culta, cosmopolita e respeitada. Sampaio foi tudo isso”.

«Um ácido e tantas vezes lúcido comentador político afirmou há dias - julgo que repassado de pessimismo e provavelmente não pretendendo elogiar - que [Sampaio] passará à história como "um Presidente normal". Dificilmente seria possível sintetizar em menos palavras o que eu penso e o que eu admiro. Só um Presidente normal pode conformar um sistema e construir o terreno para a sua estabilidade; só um Presidente normal pode sobreviver em tempos anormais e acrescentar valor no meio das dificuldades. Só um Presidente normal pode evitar os escolhos do excesso e os bancos de areia do insuficiente», dizia, recentemente o insuspeito social-democrata José Miguel Júdice.

(…) Conseguiu [Sampaio] tudo aquilo que desejava? Foi capaz de obter todos os resultados pelos quais lutou? Foi sempre feliz nas consequências das suas opções? O rigor intelectual que lhe conheço não aceitaria que eu dissesse que sim. A forma como encaro a vida não me permitiria afirmá-lo. Mas será que se não percebe que o papel do Presidente da República é mais evitar do que conseguir, mais projectar do que construir, mais avisar do que resolver, mais antecipar do que reagir? Será que não percebem que o nosso modelo constitucional não é presidencialista?» - concluía, pouco depois, o mesmo JMJ.

Em matéria da propalada ininteligibilidade do seu “discurso”, também estou como dizia recentemente Eduardo Prado Coelho: “sejamos claros: basta ter aprendido o português e não ser completamente inculto para perceber os discursos de Sampaio”. Também creio que o que se passa é que – como li algures – certos media não querem é percerber esse discurso, que não lhes convém.

Em síntese bem simples, dizia, não há muito, Eduardo Lourenço: “os dez anos de presidência de Jorge Sampaio habituaram o país a viver com normalidade»

«Sai com dignidade, sem tentar prolongar o seu poder por meios de legitimidade duvidosa» - concluía Vasco Pulido Valente, o tal “ácido e tantas vezes lúcido comentador político”, num seu trabalho sobre os três presidentes eleitos no pós 25 de Abril (também numa indisfarçável e oportuna “alfinetada” aos antecessores de Sampaio).

Rui Moreira dizia aqui há cerca de um mês: “Jorge Sampaio não foi messias, nem alimentou cortesãos. Cultivou os afectos e foi satirizado por se emocionar, mas quem o ouviu com atenção percebeu quanto o afligem os dramas dos seus compatriotas. Ainda assim, não se deixou tentar pelo populismo, nem deixou que as suas funções escorregassem para o unanimismo fácil.

(…) Os seus dois mandatos ficam assinalados pela acção política ao serviço da ética, pela coerência na recusa do maquiavelismo decadente.

O atrás aludido constitucionalista, mais dizia ontem: “julgo que se tratou de uma presidência globalmente meritória, de um Presidente escrupulosamente respeitador do mandato constitucional, culto e sensível, humanista e progressista, que levou a cabo com zelo e preocupação de acertar o seu papel de árbitro e moderador do funcionamento do sistema político e de dinamizador das energias e das ambições nacionais.

(…) Na frente interna, o Presidente foi ao mesmo tempo um discreto e equilibrado vigilante da actividade dos sucessivos governos e um activista permanente na defesa da sua visão para o país”.

Em Janeiro último escrevia, ainda, VM: “será Cavaco Silva capaz de resistir às suas próprias convicções e temperamento e às pressões dos seus apoiantes mais fogosos?”

Ora aí está uma boa pergunta.

Sim, que não bastam as palavras bonitas e de ocasião, hoje repetidas por ele na tomada de posse: de que estaria ao serviço dos portugueses e de Portugal. Que a «estabilidade política não é um valor em si mesmo», que lança «cinco grandes desafios» aos portugueses…

Palavras? Intenções? (Então não sabemos bem como o inferno está atulhado disso?)

Vamos esperar pela prática. Pela acção.

(Sr Presidente Cavaco Silva: se lá estivesse, hoje, ai não seria, não, dos que mais ou menos freneticamente o apoiaram… Nem por sombras. Nem por descuido. Seria, seguramente, dos que ficaram mudos e quedos. Mas estamos em democracia: assim, conformo-me (???!!!) e desejo-lhe boa sorte – no único sentido que pomos nessa expressão)

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NOTA: não me recordo de à volta de nenhum outro presidente (salvo, obviamente, de Carmona e, sobretudo, Tomás), ter sido tamanho o caudal de tinta feito correr com a matéria de uma sucessão.

A imagem que me ocorre é, por um lado, a de uma certa aura. Por outro, um simpático, talvez já nostálgico, acenar de um “Adeus, até sempre…” – tudo, claro, quanto ao Presidente cessante.

1 comentário:

Anónimo disse...

Gostei imenso da síntese dos comentários sobreo Jorge Sampaio.
Partilho da sua opinião. Conseguiu ser um presidente com um leque de apoiantes que quase sempre se situavam nos 70%. Para além disso conseguiu ser lúcido, firme e coerente apesar das pressões. É o político (sem o ser)que mais admiro.
um abraço
Amélia

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