Há pontes que ligam épocas, eras, fases ou meros períodos da história.
Por exemplo os consulados políticos.
Terminou hoje o mandato presidencial de Jorge Sampaio. Quero, claro, dizer que se atingiu hoje o termo dos seus dois mandatos presidenciais sucessivos.
O “Senhor” (no melhor sentido), o sensato, o culto, o melómano, o tolerante, o sensível, o íntegro... O HOMEM!... Sampaio deu o lugar ao sucessor.
Ainda dentro do mesmo registo, vêm-me logo à ideia as palavras, de ontem, mesmo, de Vital Moreira que eu – julgo que não beliscando a intenção do seu autor – “li”, para além de uma (explícita) constatação relativamente ao presidente cessante também como, nalguma medida, um queixume, ou, vá, um alerta quanto ao empossado: “A primeira exigência de um Presidente é ser uma pessoa informada, educada, culta, cosmopolita e respeitada. Sampaio foi tudo isso”.
«Um ácido e tantas vezes lúcido comentador político afirmou há dias - julgo que repassado de pessimismo e provavelmente não pretendendo elogiar - que [Sampaio] passará à história como "um Presidente normal". Dificilmente seria possível sintetizar em menos palavras o que eu penso e o que eu admiro. Só um Presidente normal pode conformar um sistema e construir o terreno para a sua estabilidade; só um Presidente normal pode sobreviver em tempos anormais e acrescentar valor no meio das dificuldades. Só um Presidente normal pode evitar os escolhos do excesso e os bancos de areia do insuficiente», dizia, recentemente o insuspeito social-democrata José Miguel Júdice.
(…) Conseguiu [Sampaio] tudo aquilo que desejava? Foi capaz de obter todos os resultados pelos quais lutou? Foi sempre feliz nas consequências das suas opções? O rigor intelectual que lhe conheço não aceitaria que eu dissesse que sim. A forma como encaro a vida não me permitiria afirmá-lo. Mas será que se não percebe que o papel do Presidente da República é mais evitar do que conseguir, mais projectar do que construir, mais avisar do que resolver, mais antecipar do que reagir? Será que não percebem que o nosso modelo constitucional não é presidencialista?» - concluía, pouco depois, o mesmo JMJ.
Em matéria da propalada ininteligibilidade do seu “discurso”, também estou como dizia recentemente Eduardo Prado Coelho: “sejamos claros: basta ter aprendido o português e não ser completamente inculto para perceber os discursos de Sampaio”. Também creio que o que se passa é que – como li algures – certos media não querem é percerber esse discurso, que não lhes convém.
Em síntese bem simples, dizia, não há muito, Eduardo Lourenço: “os dez anos de presidência de Jorge Sampaio habituaram o país a viver com normalidade»
«Sai com dignidade, sem tentar prolongar o seu poder por meios de legitimidade duvidosa» - concluía Vasco Pulido Valente, o tal “ácido e tantas vezes lúcido comentador político”, num seu trabalho sobre os três presidentes eleitos no pós 25 de Abril (também numa indisfarçável e oportuna “alfinetada” aos antecessores de Sampaio).
Rui Moreira dizia aqui há cerca de um mês: “Jorge Sampaio não foi messias, nem alimentou cortesãos. Cultivou os afectos e foi satirizado por se emocionar, mas quem o ouviu com atenção percebeu quanto o afligem os dramas dos seus compatriotas. Ainda assim, não se deixou tentar pelo populismo, nem deixou que as suas funções escorregassem para o unanimismo fácil.
(…) Os seus dois mandatos ficam assinalados pela acção política ao serviço da ética, pela coerência na recusa do maquiavelismo decadente.
O atrás aludido constitucionalista, mais dizia ontem: “julgo que se tratou de uma presidência globalmente meritória, de um Presidente escrupulosamente respeitador do mandato constitucional, culto e sensível, humanista e progressista, que levou a cabo com zelo e preocupação de acertar o seu papel de árbitro e moderador do funcionamento do sistema político e de dinamizador das energias e das ambições nacionais.
(…) Na frente interna, o Presidente foi ao mesmo tempo um discreto e equilibrado vigilante da actividade dos sucessivos governos e um activista permanente na defesa da sua visão para o país”.
Em Janeiro último escrevia, ainda, VM: “será Cavaco Silva capaz de resistir às suas próprias convicções e temperamento e às pressões dos seus apoiantes mais fogosos?”
Ora aí está uma boa pergunta.
Sim, que não bastam as palavras bonitas e de ocasião, hoje repetidas por ele na tomada de posse: de que estaria ao serviço dos portugueses e de Portugal. Que a «estabilidade política não é um valor em si mesmo», que lança «cinco grandes desafios» aos portugueses…
Palavras? Intenções? (Então não sabemos bem como o inferno está atulhado disso?)
Vamos esperar pela prática. Pela acção.
(Sr Presidente Cavaco Silva: se lá estivesse, hoje, ai não seria, não, dos que mais ou menos freneticamente o apoiaram… Nem por sombras. Nem por descuido. Seria, seguramente, dos que ficaram mudos e quedos. Mas estamos em democracia: assim, conformo-me (???!!!) e desejo-lhe boa sorte – no único sentido que pomos nessa expressão)
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NOTA: não me recordo de à volta de nenhum outro presidente (salvo, obviamente, de Carmona e, sobretudo, Tomás), ter sido tamanho o caudal de tinta feito correr com a matéria de uma sucessão.
A imagem que me ocorre é, por um lado, a de uma certa aura. Por outro, um simpático, talvez já nostálgico, acenar de um “Adeus, até sempre…” – tudo, claro, quanto ao Presidente cessante.
1 comentário:
Gostei imenso da síntese dos comentários sobreo Jorge Sampaio.
Partilho da sua opinião. Conseguiu ser um presidente com um leque de apoiantes que quase sempre se situavam nos 70%. Para além disso conseguiu ser lúcido, firme e coerente apesar das pressões. É o político (sem o ser)que mais admiro.
um abraço
Amélia
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